sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

ZEZÉ

 


Eu deveria estar preocupado com o que ele encostava na minha barriga, fosse faca, canivete ou caco de vidro. A bem da verdade podia até ser um galho ou um lápis, o dedo eu sei que não era, porque não havia calor. Era frio e parecia pontudo e afiado. Mas não parava de pensar nos cigarros.

Maldita a hora que eu resolvi cortar caminho pela rua Oliveira, voltando da padaria a rua Vitório Marçola era bem mais movimentada, bem mais segura, mas eu precisava chegar rápido. Ou ela iria me castigar, me fazer ajoelhar no milho em frente à Televisão e rezar a Ave Maria do programa do Dirceu Pereira.

- Moço, pode levar o pão e o leite, pode até levar o troco, mas pelo amor de Deus, não leva os cigarros.

O facínora riu e obedeceu. Talvez achando graça naquela criança magrela de 6 anos de idade, pedindo com voz chorosa pra ficar com um maço de cigarros.

- Você é muito pequeno pra fumar, menino. Vai acabar doente.

Quatro pães de sal, um saco de leite tipo C, um punhado de moedas e uma nota bastante gasta de 5 cruzeiros, num azul meio desbotado onde aparecia o “retrato” do Dom Pedro I jovem e de bigode fino, com cara de quem estava morrendo de tédio, bem diferente (pensava eu então) do “pai dele”, o Dom Pedro II, a estrela daquela nota cinza esverdeada de dez cruzeiros que ostentava uma barba de respeito, digna de Papai Noel. Eis o prejuízo do primeiro assalto que sofri na vida. Mas o importante é que os cigarros ele deixou. Um maço de Minister azul, branco e dourado, com toda certeza mais fedorento do que aquela marca que minha mãe fumava sem parar.

O pão, o leite e o troco eram da minha mãe. O cigarro não. O cigarro era da Zezé e eu sabia que tinha sido corajoso e por isso não iria apanhar nem ser castigado quando chegasse em casa com a má notícia.

Era muito branca, a Zezé.

A meus olhos de criança era imensa, muito alta e muito gorda, com olhos muito azuis em um rosto arredondado e de lábios finos que nunca relaxavam, nunca se abriam num sorriso. Naquele momento, em 1978, eu a conhecia e temia há quase dois anos, um terço da minha vida, desde que meus pais se separaram e minha mãe, que trabalhava o dia todo no Bemge da Praça Sete, precisou de uma empregada que cuidasse da casa e olhasse as crianças depois que chegassem da pré escola.

Instituto Maria Amália. Como eu adorava aquela escola! Ia pra lá desde o maternal, com um ano de idade, lá aprendi a ler bem novinho, a fazer fila pra ir pra sala ao som de uma canção que sei cantar até hoje, lá aprendi que o cheiro de álcool na folha do dever de casa, fresquinha do mimeógrafo, deixava a gente “alegrão”. A escola ficava a poucos quarteirões da minha casa, e naquela Belo Horizonte dos anos 1970 eu já não precisava que me buscassem depois da aula, embora minha mãe sempre me deixasse lá bem cedo, indo pro trabalho em uma Variant que tinha a cor igualzinha ao patê de fígado de pato que serviam junto com os pães no antipasto do restaurante italiano que meu pai mais amava, o Dona Derna.

Algumas vezes eu chegava da escola e esperava a minha mãe voltar do trabalho, almoçar conosco e sair de novo. Outras eu recebia o aviso de que ela não viria, que nós iríamos almoçar assentados na sala de tv, não “carecia” arrumar a mesa.

 Todas as vezes, depois do almoço e da partida da minha mãe, a ordem era a de ficar bem quietinho, ver televisão baixinho, ler um livro infantil ou brincar no quarto com as portas fechadas. Quebrar as regras significava apanhar ou então, a temida Ave Maria. Eu detestava o Dirceu Pereira. Detestava aquele programa brega que interrompia a sua programação ridícula todos os dias às seis da tarde só pra me penitenciar na frente de uma televisão preto e branco de tubo, muitas vezes ajoelhado no milho ou no feijão, um minuto interminável.

- Você tem que rezar alto, pra eu escutar. E se não fizer o que eu mandar vai apanhar e depois vai apanhar da sua mãe, pois é em mim que ela vai acreditar. Se você contar pra sua mãe ela vai te bater também, porque você foi desobediente.

Eu acreditava. E rezava fervorosamente praquela imagem na televisão, pedia pra crescer rápido e deixar de ser magrelo, e um dia poder socar o meu carrasco. Mas o que acontecia de verdade era eu ter muito medo. Medo de entrar sozinho na cozinha e encontra-la lá, medo daquele quarto de empregada pequeno e escuro, sempre fechado e enfumaçado, na minha imaginação infantil era como a cova de um dragão terrível.

Eu não entendi porque a Zezé muitas vezes andava nua pela casa. Era um apartamento cheio de janelas e com vizinhos próximos, eu tinha vergonha de ficar de cuecas, quanto mais pelado como ela. Ela tinha seios enormes e pesados com veias muito azuis, pernas cabeludas e quase nenhum cabelo lá embaixo. Não sei o quanto dessa estória toda eu bloqueio e sabe-se lá do que lembraria se me esforçasse. Prefiro não pensar nisso.

Houve um dia, não sei por qual motivo, em que a Zezé me levou à casa dela, e para isso precisamos pegar dois ônibus, descer em um ponto de ônibus perto da Hípica na cidade vizinha de Contagem e praticamente atravessar o bairro Riacho das Pedras até o que parecia ser um aglomerado de barracos. Lá conheci sua mãe e seu filho, tomei banho de bacia com água esquentada na fogueira e brinquei descalço em um descampado cheio de lixo ao lado de um riacho que nunca vou saber se é o que emprestava o nome ao bairro. Também descobri que o meu Batmóvel de brinquedo que tinha sumido – e me legado uma surra por parte da minha mãe - tinha sido “incorporado” aos brinquedos do filho da Zézé, Vi e fiquei calado.

Nesse dia ela não me bateu. Nem levantou a voz.

Dias e meses se passaram e aquele inferno parecia que não ia terminar. Tímido e medroso, eu tinha receio de contar pro meu pai e ele brigar com a minha mãe. Tinha medo de contar pra minha mãe e ela agir exatamente como a Zezé ameaçava. Um dilema insolúvel aos seis anos de idade...

Até que me lembrei do Batmóvel. Ora, se ela pegou um brinquedo meu, também poderia ter pego outras coisas.

Minha mãe sempre teve uma multitude de anéis, bijuterias imensas e coloridas, em voga tanto nos anos 70 quanto hoje. Havia um anel em especial, vermelho ou alaranjado, que chamava muita atenção. Numa sexta feira aproveitei que a Zezé estava no banho, e como que em uma operação de guerrilha peguei aquele anel, entrei em seu quarto e coloquei em sua bolsa. E ela foi embora levando o meu “presente”. Poucas vezes na minha vida senti tanto medo e tanta vergonha.

Não demorou muito tempo pra ela não mais aparecer lá em casa.

Minha mãe – que nunca foi a mais contida das pessoas – conta que descobriu que ela estava roubando e a mandou embora. A história como ela conta é bem menos civilizada e mais raivosa que esse resumo, acreditem.

Meu irmão tinha apenas 3 anos e eu fico feliz que ele não se lembre dessa época. Na maior parte do tempo ele ficava brincando, dormindo ou vendo desenhos animados, nunca apanhou da Zezé porque demorou pra entrar ou sair do banho, por ter deixado sobrar comida no prato ou porque riu alto de alguma coisa. Eu nunca contei essa história pra ele, pra minha mãe ou pro meu pai.  Na verdade, até agora, só a minha esposa sabia. A mim sempre soou uma história sofrida e exagerada, um conto melodramático de Dickens às avessas, abrasileirado e mal adaptado ao século 20.

Bem mais tarde, um grande amigo alguns anos mais velho, começou a trabalhar como radialista em Betim. Rádio Liberdade FM. Aos 16 anos, aquilo me parecia o máximo. Trabalhar como radialista numa rádio alternativa (que terminou os dias como emissora sertaneja). O horário, como todo iniciante, não era dos melhores: meia noite às 4 da manhã, sem direito a locução. Entre muitas idas acompanhando, acabei fazendo amigos e até arrumei um “affair” por lá, que um dia me convidou pra um churrasco no fim de semana. Fui de ônibus, que calhou de ter uma parada naquele mesmo fatídico ponto do Riacho das Pedras em Contagem. Olhei pra fora e congelei.

Bem ali, debaixo da minha janela, estava a Zezé. Em pé próximo ao ponto, comprando laranjas de um vendedor num carrinho daqueles que tinha uma geringonça pra descascar a fruta e tirar a casca em uma aspiral perfeita. Da janela do ônibus olhei pra ela. Ela olhou de volta, com aqueles olhos muito azuis.

E sorriu.


sábado, 16 de dezembro de 2023

PONTEARTA 2

 






A cidade que me escolheu continua pequena. Bem pequena.

Mas fisicamente tá crescendo! Nos últimos 10 anos surgiram novos bairros, salpicados de casinhas e – dependendo do lugar – casonas também. O que faz a gente se perguntar: como é que pros meus olhos a cidade aumentou tanto mas no meu coração parece que são as mesmas pessoas morando aqui?

Na verdade, nossa população permanente ficou praticamente a mesma, vez que a população flutuante (veja bem, tive que pesquisar esses termos) é grande. E na verdade, o que acontecia então, ainda acontece: os jovens partem pra fazer faculdade, estudar fora, e acabam se empregando e construindo uma vida em outras cidades, mesmo outros Estados, muitas vezes retornando bem mais tarde. Juntando tudo, o último Censo (2022) disse que hoje somos 8340 paulenses.

No primeiro texto eu citava uma porção de coisas que não tinha por aqui: Livraria, Cinema, Shopping Center, Danceteria, Metrô, Restaurante de comida Chinesa, Japonesa ou Alemã, teatro, rodoviária, escada rolante... mas tenho orgulho em anunciar que agora temos:

 

1)      Um semáforo!  Sim! Na verdade, são 3,  todos em um mesmo cruzamento complicado onde 3 vias de mão dupla se encontram e vocês podem imaginar a confusão que era. E são daqueles semáforos modernos, cheios de prosopopeia,  com contador de tempo e tudo o mais, o que só faz deixar a gente mais ansioso, será que vai dar tempo pra passar?  Geralmente dá.  Também rende muita reclamação, todo mundo se queixa de ficar parado por “tempo demais”, vocês podem imaginar a confusão que virou!

 

2)      Ônibus Urbano - Exatamente! Agora temos um circular, que, com hora marcada, percorre a cidade, centro e bairros, e sou obrigado a confessar que nunca andei nele, mas morro de vontade. Quem subiu nele uma vez foi a Cacau, meu pastor alemão, que um dia encontrou a porta aberta e invadiu o ônibus, assentando-se no primeiro banco. Só faltou latir: “acelera esse busão seu motorista!”. 

O Circular tem um ponto Central, quase uma mini-rodoviária, parada obrigatória durante o passeio com as cachorras, que adoram visitar a atendente e o motorista, super simpáticos e queridos. Abanação de rabo garantida.

O que agora  nos leva a um lamento: ainda não temos rodoviária, e há dois anos, no pós pandemia - não sem muita briga por parte da prefeita - perdemos a linha de ônibus interurbano.

A empresa disse que “ a linha tornou-se deficitária,  que o numero de passageiros não sustentava os custos” e desde então aqui só se chega ou sai em carro próprio, de carona ou de taxi mesmo. Que aperto me deu no coração, eu simplesmente ADORAVA pegar a linha pela estrada de terra, olhar as montanhas, sítios e fazendas no caminho entre Varginha e Monsenhor Paulo. Cheiros e imagens ainda enfeitam a minha imaginação sempre que lembro, desde a primeira vez que vim pra cá de ônibus, em 2001.

 

De toda forma, na cidade a maioria das pessoas continua indo pra todo lado à pé, embora o número de carros tenha aumentado, e hoje os motoristas possam até mesmo sentir um “gostinho” de cidade grande e pegar um “micro-engarrafamento” depois da Missa. Um Luxo!

As quermesses, tão típicas, se atualizaram, ganharam ares de feira moderna na nossa praça revitalizada (outra contradição, tiraram tantas árvores de lá, como assim “revitalizou”?) e assumo que ficou muito bonita e prática, com os novos estacionamentos em ângulo, mas eu tenho outra birra porque não fizeram um coreto. Puxa, em cidade do interior de MG é obrigatório ter um coreto na praça da Matriz, é uma regra tácita, né?

A verdade é que vale a pena visitar e conhecer, e os novos espaços estão sendo super aproveitados com a feirinha de domingo e os eventos – como a Festa das Nações, que acontece todo ano numa praça mega iluminada, cada barraquinha representando uma entidade (Vila Vicentina, Apae, Creches, Corporação Musical, Hospital...) e um país, com comidas típicas e tudo. Lembra quando eu falei que não tinha restaurante de comida de outro país? Pois é. Mentira. Em dezembro tem e vale a visita.  Felizmente, pra quem tem saudades dos “bingos de frango”, a Festa da Vila continua acontecendo em Junho, a tradição segue firme! E eu continuo sem sorte, não ganhei nada!

A cidade que me escolheu continua não gostando muito de rock, embora cada vez menos se ouça Tião Carreiro e cada vez mais escutemos uma mistura amalucada de funk com sertanejo, muito batido pra pouca mensagem, tudo muito frenético, bem sintonizado com o que se ouve Brasil afora.  Meus ouvidos de velho chato doem, mas fazer o que? Os bons amigos continuam se reunindo aqui em casa, ao redor do toca discos. E é obrigatório ouvir tudo sem pular música, ora bolas, Vitrola não é Spotify.

Profissões ainda ganham ares de sobrenome, e ainda encontramos o “fulano da padaria”, o sicrano da borracharia, o Tião Pedreiro ou o João do “banco do Bradesco” ( algumas pessoas falam assim mesmo, e eu adoro). Já eu, continuo tendo a mesma dona, ainda sou o “Alexandre da Fabiana, é claro, embora “Xandão da banda” tenha ocupado um segundo lugar, seguido não tão de perto por “aquele barbudão que passeia com os cachorros”. Não importa a alcunha, todo mundo sabe de quem estão falando.

Por falar em som, o caminhão de lixo aqui toca música e também transmite mensagens, foi até objeto de matéria na televisão, chique demais né. E o som das maritacas, dos passarinhos e da criançada brincando na rua permanece constante e forte, que sorte!

Os visitantes mais desavisados continuam se assustando com os anúncios de falecimento nos auto-falantes da igreja, agora mais modernos e potentes. Dá pra sentir a cidade parando, as pessoas saindo na porta dos comércios ou chegando o ouvido mais pertim da janela pra escutar o nome de quem partiu. Algumas funerárias também costumam anunciar com carro de som, tem uma até que faz o anúncio com a marcha fúnebre de fundo, coisa assustadora de se ouvir.

Assustador de verdade foi a pandemia de Covid, a cidade silenciosa e com as entradas obstruídas por valas, montes de terra e tubos enormes de concreto. Mais de 20 cidadãos nos deixaram com muitas saudades, e eu, contando gente de fora da cidade, perdi meu pai e mais 3 pessoas próximas e queridas. Muito ruim viver a história.

O lado bom é que aqui ainda continuamos a sentir o que é realmente viver em sociedade, e a dor de um acaba amenizada pelo carinho e empatia de todos.

 Por outro lado, a cidade ainda é pequena e tá todo mundo junto e por isso, se não quiser virar notícia, nada de tentar fazer xixi na praça ou bobiça dentro do carro. Aliás, o centro da cidade tá cheim de câmeras, melhor se comportar.

A rádio comunitária perdeu audiência e a rádio da cidade ao lado, que todo mundo ouvia, perdeu seu maior locutor, o simpaticíssimo Jorge Bala. A turma agora ouve rádio pela internet, e tem gente da cidade – natural e adotivo - fazendo sucesso como locutor, dá orgulho.

Em resumo, é isso. Monsenhor Paulo, nossa “PonteArta” continua livre da miséria e da violência das grandes cidades, continua povoada de pessoas bonitas, homens e mulheres, agora descendentes dos descendentes da mistura de italianos e gente da terra. Continua pacata e convidativa, continua com seus pequenos problemas amenizados por enormes corações. Continua gostando de foguetes, mas felizmente um pouco menos que antes.

Eu pensava ter escolhido essa cidade, escrevendo o primeiro texto descobri que foi ela que me escolheu.
E não tenho o menor arrependimento.

 


A FOTO QUE NUNCA HOUVE.


 



                                                                          Nick Cave

Meu amigo "recente" - coisa duns 35 anos apenas - Teteu Roadhell - me visitou há pouco tempo, e entre muitas lembranças e risadas, surgiu esse assunto.

Nos idos de 1993 o músico Australiano Nick Cave (que já era bem famoso entre quem curtia aquele som dito "alternativo) fez um show em Belo Horizonte. Veja bem, ele já havia tocado no Brasil em 1989, e pra aumentar o toque de realismo fantástico dessa estória, se apaixonara por uma brasileira e chegou mesmo a morar em terras paulistas entre 1990 e 1992 (se não me engano).
A questão é que nessa época a gente vivia duro - eu no alto dos meus 20 anos, não raro andava à pé pela cidade pra economizar a grana do busão e poder meiar uma garrafão de 5 litros de vinho barato com meus amigos e curtir o fim de semana - então, comprar um ingresso pra um "show internacional" tava fora de cogitação.
Só que, na época do show, rolou pelo "metiê" da turma "alternatchiva" o boato de que o Nick Cave ia aparecer, depois da apresentação, em um bar que de tão underground devia se situar na litosfera ( mas na verdade ficava no bairro Funcionários mesmo, numa casa de dois andares com ares de abandonada, vários cômodos pequenos interligados por uma escada apertada, tudo decorado com ferro velho), chamada SQUAT (pesquisem o termo pra entender o porquê do nome).
Ora, grana suficiente pra ir no Squat a gente tinha, inclusive já tinha ido e ainda iria em vários shows por lá (Okotô, Chemako, Os Contras... esqueci o nome de outras bandas) que rolavam num pequeno palco apertado onde as paredes até pingavam com a condensação do suor da plateia, formada por punks, darks (como a gente chamava os "góticos" de então), alguns skatistas, músicos de várias tendências, enfim, uma miscelânea.
Chegamos no bar por volta das 23 horas, casa super vazia, uns 10 gatos pingados espalhados pelos ambientes, o que atribuímos ao show. As horas passavam, a casa continuava "meia bomba", o show já deveria ter acabado (imaginávamos) e nada do Nick Cave aparecer. Estávamos quase desistindo quando um burburinho no andar de baixo chamou nossa atenção. Eis que chegava um grupo "grande" (umas 10 pessoas, o que provavelmente aumentaria em 1/3 a ocupação do bar) e no centro de tudo, O CARA, Nick Cave em pessoa. Alto e calado, foi subindo as escadas, conhecendo o bar (alguém fazia o papel de cicerone) e deu de cara com a gente.
CLARO, puxamos assunto em um inglês meio capenga (sem saber que ele entendia bem o português após anos morando em São Paulo) e pra coroar, pedimos pra tirar uma foto!
O que diriam nossos amigos! Seríamos "idolatrados", os "caras que tiraram uma foto com o Nick Cave"! (como a gente é besta quando é jovem, né).
Lembrem-se, era o começo dos anos 90 do século passado, shows internacionais em BH eram raríssimos e não tinha essa de celular com câmera, sequer câmera digital. A coisa era máquina com filme, de revelar mesmo... Lembro que a espera pra revelação foi um suplício. E aí Matheus, revelou?
Até que a foto ficou pronta. E pro nosso desespero, era aquilo ali. Uma gravura desfocada e borrada em preto e branco (filme colorido era mais caro) onde mal dava pra adivinhar minha silhueta (cabelo comprido e nariz arrebitado, à direita da foto) e a "estrela" da vez, no centro, com o que parecia ser um blazer e algo como uma mancha onde estaria o rosto.
Que decepção!
Após alardear pra turma toda nossa façanha, a gente só tinha aquilo pra apresentar.
Foi a "foto que nunca houve".
Hoje rende muitas risadas e uma saudade imensa de um tempo que não volta mais. Já a música do Nick Cave & The Bad Seeds foi ficando cada vez melhor.
Nick Cave e Eu. Squat Bar, BH, 1993.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O VELHIM.




(Foto meramente ilustrativa)



Ontem, fui premiado com uma Murphética (da lei de Murphy) soma de fatores: greve dos bancários e a mensagem na tela da máquina de auto-atendimento: "renovar senha". 
Ok, pensei. ToFu. Só vou sacar meu benefício daqui a uns, sei lá, 590 dias.
Esperançoso, lá fui eu aos Correios, ver se, quem sabe, conseguiria revalidar a senha.

Cheguei cedo, eram umas 8:20, a agência abriria dali a dez minutos. Fiquei olhando aquele pessoal na fila, em sua maioria gente muito simples, aposentados que chegam no primeiro ônibus vindo da roça, pra tirar o seu dinheirinho e pagar as suas continhas. Gente que, deu pra notar, ainda usa a oportunidade pra se encontrar, sabe-se lá há quantos anos, colocar a conversa em dia, ou "assuntar" como eles mesmo dizem.

Agência aberta e, mesmo sendo um dos primeiros a chegar, resolvi aguardar.
Deixei todo mundo ali passar na minha frente, fui verificar a minha caixa postal, quando retornei, já era o décimo segundo.

O papo, animadíssimo, continuava dentro da agência. Sem muita regra, todo mundo dando opinião, falavam sobre tudo, da greve dos bancos até o receio de uma possível falta de medicamentos (aposentado morre de medo disso, e me incluo!) e, é claro, a "atualização" sobre quem passou dessa pra melhor ou está quase.  Já escrevi que aqui na roça o pessoal só morre "em bando", né? Culpa, dizem, de uma maldição que um padre jogou, muito antigamente... e é assim mesmo. 

Atualizadas as "notas de falecimento", lá pelas tantas, chega um senhorzim, simpático de tudo, de chapéu na cabeça e uma bolsa rosa da Hello Kitty onde ele levava (mais tarde eu vi, é claro que deixei passar na minha frente também) os documentos. Duas pessoas à frente, estava um conhecido (dele, não meu), e foi aí que eu tive a sorte de presenciar um daqueles diálogos inesquecíveis:

- "ô seu Joaquim, ocê tá bão?
-tô bão e ocê, tá bão né!
-eu tou bão também, e ocê?
- tou bão.
- ah... então tá bão uai".

Ficaram os dois quietinhos e felizes depois dessa, um deles até comprou uma tele-sena pra tentar a sorte em casa depois, porque " a mulher adora marcar essas coisas".

Na hora eu lembrei de um outro "causo", ocorrido lá no final dos anos 80, quando eu ainda era um adolescente e, entre outras coisas, podia se fumar dentro dos ônibus. (Até pouco tempo atrás, o ônibus que fazia a linha aqui de Monsenhor Paulo até Varginha ainda tinha os cinzeiros, o que não me deixa  mentir).

Eu e dois amigos indo passar um carnaval na praia. Da rodoviária da cidade maior, pegava-se um ônibus pra onde queríamos ir, desses bem "cata-jeca" que, lá pelas tantas, parou no meio do nada pra deixar um velhim embarcar.

Ele se assentou dois bancos à nossa frente. Colocou a trouxa na cadeira ao lado, mexeu lá dentro, tirou um canivete, o fumo de rolo, enrolou o cigarrim, acendeu e fumou feliz o resto da viagem.

Pouco antes do desembarque, lá vinha o cobrador, pedindo a via da passagem... chegou ao velhim:

- "a passagem, Sr.
- o quê?
- a passagem, que eu anotei logo que você entrou.
- aquele papelim? - perguntou.
- aquele papelim? - reforçou.
-é.
- pitei ele, ué! "

(pensa num sorriso aberto, daqueles cheios de dentes faltando e de alegria e simplicidade sobrando).

Pensando nisso tudo, saí da agência dos correios mais feliz do que entrei. Coisas de cidade pequena, onde ainda conseguimos parar pra escutar.

 De noite, contei o caso pra Fabi.

- Escreve isso, Lê!

Pois é.


A propósito: como o cartão de benefício era do INSS e não do banco, consegui revalidar a senha.
Sorte a minha, né!



quarta-feira, 12 de novembro de 2014

COLATERAL.



Faz algum tempo que eu não escrevo. Aliás, já estão ficando enjoativas as justificativas nesse teor. Fazer o quê, né! Desculpa aí.

Às vezes eu acho que o impulso de escrever o blog é meio que desencadeado pela dor, ou por algum episódio inflamatório... coincidentemente, eis que me encontro em um deles já faz algum tempo.

E foi exatamente lendo umas bulas aqui e acolá que tive a inspiração pra digitar (com certa dificuldade, pois as mãos estão BEM afetadas, dedos em gatilho, "garras" armadas, tou igual uma ave de rapina. Águia careca, talvez?) essa crônica.

Faz um tempão, eu escrevi sobre nossa relação com os medicamentos. Não só a dos doentes crônicos, mas de todas as pessoas. A verdade é que muitas vezes tratamos remédios como balas, crianças inconsequentes que somos. Depois reclamamos dos efeitos colaterais, das reações indesejadas... outras vezes, é claro, somos obrigados a escolher o "menor dos males".

Aliás, foi o uso prolongado dos corticóides que me legou a catarata no começo do ano, também objeto de um texto aqui. Quando paro pra pensar nas outras opções constantes na bula, até que tive muita sorte. Diabo de mania de ler bula! Vocês lêem? Eu leio. Na verdade, eu leio tudo em que coloco as mãos, de folheto de loja de eletrodoméstico ao manual do liquidificador. Sou, como diz a Fabi, um "leitão". Só espero que ela não queira me pururucar no próximo Natal.

Tem gente que lê bula só pra ter o "prazer" de somatizar tudo. Prato cheio pros hipocondríacos. Tem gente que não lê, de medo de sentir aqueles troços todos.
Tem gente que, se ler, não toma o remédio: "eu, hein, melhor ficar gripado do que ser parte do um "porcento" de pessoas que apresentam palidez, palpitações, taquicardia, desconforto precordial, ansiedade, fraqueza, insônia e cefaléia!"

É sempre assim. Você quer corrigir um trocinho só, um "nigucim de nada" como dizemos aqui em Minas, e periga levar um tantão de efeito colateral como troco.
e não vá, incauto mortal, recorrer ao google pra saber o que é desconforto precordial, por exemplo. O coração até dói antes mesmo de você entender o que seja.

Só que alguns desses efeitos colaterais são, digamos, engraçados.
O diabo dos analgésicos e anti-inflamatórios que eu tou tomando parece que foram feitos pra mim. Dentre as dezenas de efeitos colaterais encontram-se:

Tendência a aumento de peso!
Sim, não é aquela pizza com bordas recheadas do restaurante do Hotel Veredas (recomendo, hein!) que me engorda. É o remédio! Que bela desculpa pra chutar o balde: capricha aí no bacon, amigão, vou engordar de qualquer jeito mesmo! O que? Desconforto precordial? E eu sei lá o que é isso, rapaz!

Alopecia!
Dane-se. Já sou careca mesmo. Relativamente...
(já repararam que que todo careca é peludo! Deve ser alguma compensação evolutiva. Tudo bem que não tem cabelo no alto da cabeça, mas as sobrancelhas, as orelhas, os braços... tudo te faz aquela versão light do elo perdido, ou algum cosplay de Tony Ramos, como preferirem).

Faz uma semana eu estava mantendo o meu corte de cabelo, também conhecido como "bola de sinuca", quando, ao puxar papo com o cabeleireiro, descobri que não sou um caso perdido. Tem como fazer um penteado em mim!
O tal penteado tem até nome: "laRgato DAORA".

Ele é assim, ó: começa do lado esquerdo da cabeça, onde fica a cabeça e as patas dianteiras dele. Dá a volta no cocuruto (na nuca) com o corpo e demais patas (evitando assim a GRANDE clareira desmatada do topo da cabeça) e o rabo termina no lado direito, descendo pelas costeletas e emendando com a barba. Um luxo. Da hora mesmo! Mal posso esperar pra não fazer esse troço.


                     "laRgato DAORA. Versão básica pra quem tem cabelo em cima".
                          A "minha", emendando com a barba, é melhor, né não?                     

Flatulência!
Esse é o tipo de efeito colateral que você é que tem, mas quem sofre são os outros. No fundo, é até bacana ter uma opção a mais pra se jogar a culpa, além do cachorro e da pessoa idosa. Desculpem, pessoal, foi o remédio.

Eu bem gostaria que esse efeito fosse inodoro. Ou silencioso. Ou ambos. A verdade é que, geralmente, quanto mais silencioso, pior. Como um ninja: silencioso e mortal. (reparei que os "ninjas" gostam muito de "aparecer" após um jantar de sushi. Coisa de japonês, né!).

O problema com esse efeito colateral é que não se trata de um punzinho tímido e inocente, um único PUM (como a placa do carro do meu primo). Não. A coisa é feia. Tou falando de uma sinfonia inteira, um sonoro e decibélico encadeamento em colcheias de dar orgulho aos bateristas de rock pesado. Aí, quem morre de vergonha é quem está ao seu lado: "Lê, que coisa, tem gente atrás".
Tomara que seja surda. Não sou eu, meu amor. É o medicamento...

Entorpecimento.
Esse eu gosto! Dá uma paaaaz, uma caaaaaalma, um soniiiiinho... o humor fica uma beleza. E a dor... que dor? Dói não, seu moço, posso até colocar o dedo reto que... peraí, dói sim. Dói pra caramba, para, porra, não força!
Se você encontrar comigo e eu disser que tou doidão, é mais ou menos isso que tou sentindo. Mas não aperta minha mão com força, porque dói sim.

Esses são apenas alguns dos efeitos que tou lembrando. Aliás, no momento lembro-me deles quase toda hora, já que tou sofrendo esses troços todos. Como sempre, bem mais leves e melhores que as "alternativas" que eu li na bula.

Podia ser pior. Sempre pode.
Hoje mesmo eu li a bula de um medicamento que a Fabi tá tomando pra diminuir o stress e acalmar o coração.

JURO! Dentre as dezenas de opções "agradabilíssimas" descobri que se fosse eu tomando teria 1% de chances de desenvolver "problemas ejaculatórios". E 1/10.000 chances de ter priapismo (leia-se, mastro sempre em riste!).
Já pensaram o terror que deve ser estar pronto pra coisa o tempo todo, mas não conseguir chegar a tempo hora nenhuma? Ficando mais careca, mais gordo e bem mais peidorrento nesse processo? Socorro!

É por essas coisas que não é interessante tomar medicamentos a seu bel prazer. Mas já que sou obrigado pelas circunstâncias e tenho o aval da dotôra, sigo fazendo meu sonzinho... e ficando mais carequinha... quem sabe eu até faça o tal laRgato DAORA...

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

"SEMI-ÓTICA"


"Loris" Ipsum catarático (não confundir com catártico).

E não é que o ANTINFLAMATÓRIO ficou abandonado por quase dois anos! 

Vocês podem até achar que de lá pra cá minha vida ficou desinteressante (e ela já foi interessante?), ou que tenha havido  algum bloqueio criativo, ou que eu tenha sofrido uma nova crise incapacitante derivada da Espondilite Anquilosante (E.A para os do "metiê")... nada disso. Faltou apenas vontade, reconheço. Sou um pai muito desnaturado. Não sei bem o que acontece, acho que eu só funciono mesmo no tranco. E só escrevo mesmo se estou a fim...

Isso posto e "assuntado" (como dizem aqui na roça), o fato é que agora me deu vontade de retirar o blog das "catacumbas". Se o que vai sair daqui vai ser bom ou ruim, depois vocês me contam.

O "bichim" simpático ali em cima, mostrando a língua, é um Lóris. Um primo "zoiudo" e noturno dos lêmures. E não é por acaso que a foto dele (acho que não é um selfie, a não ser que o danado consiga segurar a câmera com a cauda) tá embelezando esse texto. Afinal, hoje quero falar dos olhos, meus e dos outros.

No primeiro dia desse ano, logo pela manhã, curtindo a piscina de um hotel muito bacana em Fama (pertim de Alfenas, na beira da represa de Furnas) onde tocamos com a banda na festa de ano novo mais Blues da região, comecei a notar uns fenômenos esquisitos. Parecia que minha vista tinha ficado meio embaçada, e pra onde eu olhasse era como se uma "revoada" de pontos pretos cruzasse a minha visão. Deve ser o sol e o cloro, pensei...

Na semana seguinte, meu olho direito começou a inflamar, ficar bem vermelho, arder... e o embaçamento continuava. Marquei a consulta com oftalmologista, aquele mesmo que já havia tratado de dois episódios "brabeira" de uveíte. Medão de ser isso, mas a dor e a vermelhidão eram bem diferentes. Também não rolava a fotofobia. Enfim - e isso serve pra quem é doente crônico e pra quem não é - já que tava rolando algo estranho a algum tempo, o melhor é não perder mais tempo e olhar logo o que se trata.

Consulta realizada, afastada a possibilidade de uveíte, afastada a (minha) suspeita de retorno da miopia (que o último episódio de uveíte havia corrigido, como já contei em algum texto por aqui), ficou a notícia de que eu estava com catarata no olho esquerdo (e não no direito, que ardia!). No MEIO do olho. Madurinha pra operar. Um olho só. Metade da minha visão. Semi-ótica.

Catarata Cortisônica. Mais um daqueles problemas advindos da solução. Tanto tempo usando cortisona, não poderia passar batido mesmo! Analisando a bula friamente, nem foi das piores consequências!

Podia, sei lá, ser o Zoloft, que indicam pra depressão e não raro faz o pobre usuário ter ereções que duram uma 3 horas, com incapacidade de ejaculação e orgasmo! (é o que chamam de "falência ejaculatória"). Não é à toa que o segunda pior efeito colateral do troço seja a compulsão suicida (ok, um remédio pra depressão que pode induzir ao suicídio, não é um MILAGRE da farmacopéia moderna?!).

O "lado bom" é que eu já sabia haver um convênio de cirurgias de catarata através da prefeitura da minha cidade. O lado ruim é que, desde que a Fabiana, em um ato de completa insanidade inconsequente, me convidou pra assistir o vídeo da cirurgia de correção de miopia que ela fez - convite que eu, inocente, aceitei - eu me BORRAVA de medo de operar os olhos.

(não sei se vocês já viram, só sei que tem um momento em que uma espécie de "guilhotina - assim me pareceu - DECEPA a parte de cima do olho e abre aquilo tudo e... vou parar porque já me deu tonteira... eu devia era ter pedido pra filmarem a minha colonoscopia, isso sim seria uma "vingança" à altura!).

A burocracia em nosso país sendo o que é (inclusive já foi objeto de outro texto meu por aqui), ainda mais na área da saúde, acabei realizando a cirurgia há cerca de uma semana.

A isso, soma-se o fato de que minha médica me orientou a não aplicar o medicamento um mês antes da cirurgia e só retornar um mês após a cirurgia. Afinal, trata-se de um imunossupressor, e ninguém quer ficar sem imunidade enquanto uma guilhotina decepa parte de seu olho.

Como os adiamentos da data eram constantes, incertos e não sabidos, nessa de "vai ser na próxima semana" acabei ficando 4 meses sem o medicamento. Meu segundo recorde desde aquele episódio da tetraplegia de dois anos atrás. Só posso dizer que, apesar de sofrer algumas pequenas crises de dor e rigidez, até que me saí bem! Mas definitivamente não posso ficar sem ele... estou louco pra esse mês passar logo e me permitir retornar às minhas injeções.

Até que, um belo dia, a coisa se concretizou, e acabou se realizando, hoje faz uma semana. É claro que, sendo comigo, a coisa não poderia ser lá muito normal. A começar pelo tipo da catarata, que automaticamente me fazia ser um dos mais "novos" entre os operados no mutirão, e um dos mais "cegos", já que, por ser medicamentosa, a coisa surgiu "no meio da vista" e não foi "amadurecendo" como é mais normal acontecer.

E o mais divertido era exatamente observar os meus "colegas". Acompanhado de minha sogra, que também faria a cirurgia. Enquanto eu tremia de medo, lá estavam eles, assuntando, dando risada, colocando o papo em dia, em sua maioria "veteranos" da cirurgia em um dos olhos, a grande parte deles "abençoados" por ignorar completamente os detalhes do que iria acontecer muito em breve. 


Tão tranquilos, tão animados, tão alegres com a expectativa de voltar a enxergar melhor, tão brincalhões a respeito do "temido" (que na verdade vem se revelando ser mega entediante, apesar de cercado de cuidados) pós-operatório que acabaram me contagiando.

E a fila andando, todo mundo em jejum (até de água) desde a noite anterior, por volta das 9:30 os primeiros da fila começaram a sair da sala de cirurgia, um bando de velhinhos alegres em seus óculos escuros enormes e coloridos. Até que por volta das 11:30 chegou a minha vez (12º da fila, o primeiro estava lá desde às 4:30 da manhã, segurando o lugar numa ansiedade inexplicável).

O que posso dizer? Medão, danado, é claro. E nem ver o cirurgião, todo paramentado e usando uma bandana da Harley Davidson (juro! um dos meus!) me acalmou.

Só digo que não vi quase nada. Não fosse a minha mente fértil, nem saberia o que acontecia comigo. 
Mas intuí muito: sei que rolou a tal guilhotina. Sei que usaram água ao invés de laser. Gelada! E que o que eu achava ser uns "empurrões" no meu globo ocular provavelmente não eram bem isso... Sei que o corte foi colado e não costurado (pois a tal cola acabou bem na minha vez e tivemos que aguardar uns minutos até chegar um bocadim). No mais, era uma luz bem forte, um brilho azul (que ficava cor de rosa quando rolavam os tais "empurrões") e o que me parecia ser bolhas d'água, mais o barulho dos aparelhos todos, depois alguma coisa empurrando um troço pra dentro do meu olho (a lente!), "acertando o foco",  tudo aquilo lembrando muito aquelas experiências extraterrestres dos filmes B. 

Pois é. Pra quem acredita naquela letra em que eu fui abduzido, aparentemente aconteceu de novo. Saí da sala de cirurgia cerca de 20 minutos depois, empolgadíssimo!

Vou parar por aqui.

Porque eu estou ofuscado. Porque ainda não peguei aquele ritmo pra escrever, apesar de estar gostando bastante dessa retomada, oxalá o tesão persista. E porque o dotô mandou ficar só algumas horas na net, nessa fase de recuperação.

Espero que eu tenha matado a curiosidade desse povão todo (beirando umas 5 pessoas) que veio me perguntar "online" como é que foi. Como diria o Chicó: "num sei, só sei que foi assim". (será que eu aumentei tanto o causo?).

Agradeço de coração as mensagens de força e apoio quando eu (bem ao meu estilo) alardeei que ia fazer a cirurgia. Tem gente que tem medo de falar sobre essas coisas de saúde, medo do "olho gordo" (ou outra magia qualquer). Eu recebi foi carinho, positividade e força.

Tenho certeza de que, se rolou a tal gordura ocular, foi devidamente lipoaspirada pelas máquinas tão alienígenas daquele médico motociclista de sobrenome curiosamente parecido com o nome do nosso país.

Até a próxima (postagem, não cirurgia. E que não seja daqui a dois anos!).






quarta-feira, 28 de novembro de 2012

STRANGELOVE.


(Oi, pessoal. 

Brincando com minha prima no Facebook, acabei escrevendo essa crônica.

Diferente do que eu sempre escrevo, mas... quem entende de onde vem a inspiração pra escrever minhas bobagens?)



There'll be times when my crimes
Will seem almost unforgivable
I give in to sin
Because you have to make this life liveable"
(Strangelove - Depeche Mode)



Ninguém consegue imaginar como uma cidade grande pode ser chata em um dia chuvoso, estava pensando o taxista, deitado em seu banco, por baixo de um jornal sensacionalista que havia encontrado no carro, mais cedo. Devia ser do outro motorista, do turno da noite.

Não que pudesse reclamar, afinal, quanto pior o clima, maior a clientela, e melhor a grana, já que pior também ficaria o trânsito.

Mas o dia estava meio decepcionante. Estacionado no ponto de táxi daquele shopping center de bacana, já tivera que amedrontar alguns taxistas "locais", bando de trogloditas agindo como uma matilha. Mas não com ele.

Ligou o som. Bem alto. Queria pensar melhor, sem a barulheira do estacionamento. Mal conseguiu escutar as batidas no vidro.

- Tá livre? (uma voz feminina...)

- Depende... (maldita impulsividade!) quer dizer, tou sim, entra aí.

Disfarçou enquanto olhava a moça pelo retrovisor... hmmm... o dia já ficou bem mais interessante.


- E aí, vai pra onde?  (perguntou, já abaixando o som do carro)

A moça grita:

- Espera! Não abaixa! Aumenta! Amo essa banda!

- Tá. Aumento. Mas vai pra onde?

- Pro Cruzeiro. Segue aí a Contorno, depois pega a Afonso Pena.

- Não quer que eu corte pela Grão Mogol?

- Não. Quero curtir o som. Amo Depeche Mode.

(Depeche Mode... pensou o motorista... hmmm... é daquelas. Já engatando a primeira e deixando passar um ônibus, abarrotado)

- Você é dessas.

- Dessas o quê?

- Esquece.

- Não, pô. Fala! Vou me ofender.

- Calma. Dessas moças que curtem um som alternativo.

- E o que que tem a ver? Isso quer dizer o quê? que eu curto drogas, beijar meninas, que eu não tomo banho?!

- Calma... só tou falando.

- Aumenta mais o som. Adoro a I Just Can't get enough. Aliás, pra um taxista, até que tem um gosto musical bacana.

- Obrigado. Gosto de ouvir o que é bom. Qual o seu nome?

- Ana.

- Gosto de Ana. Adoro pessoas-palíndromo. São constantes, mantém-se iguais não importa como você as leia.


- E você lê pessoas, é, Nelson?

- Como é que sabe o meu nome?

- Tá ali ó, escrito no cartãozinho.

- Verdade!

- Você não se parece com a foto.


- É antiga.

- E então você lê as pessoas, né. Leia-me.

- Você é romântica mas gosta dos Ramones. Tá chateada porque teve
 um dia decepcionante. Conheceu um carinha no Facebook e veio pra esse shopping de playboy encontrar com ele. Só que ele era muito certinho, usava as meias combinando com a camisa. Ou com a cueca. Você queria bater papo e beber, ele sugeriu que assistissem o último episódio do Crepúsculo e depois comessem AQUELA saladinha... você saiu correndo e deixou o cara falando sozinho.

- Nossa!

- Acertei?

- Não. Errou tudo. Quase tudo. Só acertou os Ramones porque viu minha tatuagem, né? Entra nessa próxima rua aí, tamos quase chegando.

- Ok. Aqui?


- Pode ser. Aqui tá bom.

- Mas tá chovendo.

- Aqui tá bom.

- Ok. Deu nove reais. Faço por oito.

- Tudo bem. Toma. Fica com o troco.

Ela desce do carro, ele acelera. De cantar pneu na chuva. Um pouco assustada, faz sinal pra outro taxi que - sorte - passava ali na mesma hora. Entrando no carro, ainda consegue escutar, ao longe, o rádio do outro táxi, esgoelando Strangelove. Devia ser um disco inteiro do Depeche Mode.

Horas depois, o motorista está em casa. Nu, na frente do espelho, brincando com uma faca.  E ouvindo música, bem alto.

- Não entendi (diz o reflexo).

- Não entendeu o quê? (responde o motorista).

- Você não gosta de Depeche Mode. Gosta de Roberto Carlos. De vez em quando do Elymar Santos. Nem sabe falar inglês! O cd era da outra moça!

- Não interessa. Gostei dela. Queria ela.

- Mas você gosta de louras. A Ana era morena.


- E daí. Quero variar. (a faca deslizou lascivamente por seu peito, cheio de cicatrizes)

- Bem, ela desconfiou. Acho que desceu do carro antes de chegar em casa.

- Não faz mal. Essa cidade é cheia de Anas. Essa aí nunca vai saber de nada.

- Acho que arriscou. Não devia dar bobeira assim.

-Ah, cala a boca (diz o motorista, socando o espelho).

Mil reflexos o olharam de volta, sorrindo com sarcasmo. No som, Roberto Carlos cantava que o cara, afinal, era ele.


Enquanto isso, do outro lado da cidade, na Pedreira Prado Lopes, a polícia encontrava um táxi abandonado. Um Fiat Idea, branco. No porta-malas, os corpos de três pessoas. O motorista, identificado como Nelson. E duas moças, loiras, jovens. Provavelmente prostitutas. Irreconhecíveis de tão mutiladas.

E a cidade, agora sem chuva, se preparava pra mais uma noite.