(Oi, pessoal.
Brincando com minha prima no Facebook, acabei escrevendo essa crônica.
Diferente do que eu sempre escrevo, mas... quem entende de onde vem a inspiração pra escrever minhas bobagens?)
" There'll be times when my crimes
Ninguém consegue imaginar como uma cidade grande pode ser chata em um dia chuvoso, estava pensando o taxista, deitado em seu banco, por baixo de um jornal sensacionalista que havia encontrado no carro, mais cedo. Devia ser do outro motorista, do turno da noite.
Não que pudesse reclamar, afinal, quanto pior o clima, maior a clientela, e melhor a grana, já que pior também ficaria o trânsito.
Mas o dia estava meio decepcionante. Estacionado no ponto de táxi daquele shopping center de bacana, já tivera que amedrontar alguns taxistas "locais", bando de trogloditas agindo como uma matilha. Mas não com ele.
Ligou o som. Bem alto. Queria pensar melhor, sem a barulheira do estacionamento. Mal conseguiu escutar as batidas no vidro.
- Tá livre? (uma voz feminina...)
- Depende... (maldita impulsividade!) quer dizer, tou sim, entra aí.
Disfarçou enquanto olhava a moça pelo retrovisor... hmmm... o dia já ficou bem mais interessante.
- E aí, vai pra onde? (perguntou, já abaixando o som do carro)
A moça grita:
- Espera! Não abaixa! Aumenta! Amo essa banda!
- Tá. Aumento. Mas vai pra onde?
- Pro Cruzeiro. Segue aí a Contorno, depois pega a Afonso Pena.
- Não quer que eu corte pela Grão Mogol?
- Não. Quero curtir o som. Amo Depeche Mode.
(Depeche Mode... pensou o motorista... hmmm... é daquelas. Já engatando a primeira e deixando passar um ônibus, abarrotado)
- Você é dessas.
- Dessas o quê?
- Esquece.
- Não, pô. Fala! Vou me ofender.
- Calma. Dessas moças que curtem um som alternativo.
- E o que que tem a ver? Isso quer dizer o quê? que eu curto drogas, beijar meninas, que eu não tomo banho?!
- Calma... só tou falando.
- Aumenta mais o som. Adoro a I Just Can't get enough. Aliás, pra um taxista, até que tem um gosto musical bacana.
- Obrigado. Gosto de ouvir o que é bom. Qual o seu nome?
- Ana.
- Gosto de Ana. Adoro pessoas-palíndromo. São constantes, mantém-se iguais não importa como você as leia.
- E você lê pessoas, é, Nelson?
- Como é que sabe o meu nome?
- Tá ali ó, escrito no cartãozinho.
- Verdade!
- Você não se parece com a foto.
- É antiga.
- E então você lê as pessoas, né. Leia-me.
- Você é romântica mas gosta dos Ramones. Tá chateada porque teve um dia decepcionante. Conheceu um carinha no Facebook e veio pra esse shopping de playboy encontrar com ele. Só que ele era muito certinho, usava as meias combinando com a camisa. Ou com a cueca. Você queria bater papo e beber, ele sugeriu que assistissem o último episódio do Crepúsculo e depois comessem AQUELA saladinha... você saiu correndo e deixou o cara falando sozinho.
- Nossa!
- Acertei?
- Não. Errou tudo. Quase tudo. Só acertou os Ramones porque viu minha tatuagem, né? Entra nessa próxima rua aí, tamos quase chegando.
- Ok. Aqui?
- Pode ser. Aqui tá bom.
- Mas tá chovendo.
- Aqui tá bom.
- Ok. Deu nove reais. Faço por oito.
- Tudo bem. Toma. Fica com o troco.
Ela desce do carro, ele acelera. De cantar pneu na chuva. Um pouco assustada, faz sinal pra outro taxi que - sorte - passava ali na mesma hora. Entrando no carro, ainda consegue escutar, ao longe, o rádio do outro táxi, esgoelando Strangelove. Devia ser um disco inteiro do Depeche Mode.
Horas depois, o motorista está em casa. Nu, na frente do espelho, brincando com uma faca. E ouvindo música, bem alto.
- Não entendi (diz o reflexo).
- Não entendeu o quê? (responde o motorista).
- Você não gosta de Depeche Mode. Gosta de Roberto Carlos. De vez em quando do Elymar Santos. Nem sabe falar inglês! O cd era da outra moça!
- Não interessa. Gostei dela. Queria ela.
- Mas você gosta de louras. A Ana era morena.
- E daí. Quero variar. (a faca deslizou lascivamente por seu peito, cheio de cicatrizes)
- Bem, ela desconfiou. Acho que desceu do carro antes de chegar em casa.
- Não faz mal. Essa cidade é cheia de Anas. Essa aí nunca vai saber de nada.
- Acho que arriscou. Não devia dar bobeira assim.
-Ah, cala a boca (diz o motorista, socando o espelho).
Mil reflexos o olharam de volta, sorrindo com sarcasmo. No som, Roberto Carlos cantava que o cara, afinal, era ele.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, na Pedreira Prado Lopes, a polícia encontrava um táxi abandonado. Um Fiat Idea, branco. No porta-malas, os corpos de três pessoas. O motorista, identificado como Nelson. E duas moças, loiras, jovens. Provavelmente prostitutas. Irreconhecíveis de tão mutiladas.
E a cidade, agora sem chuva, se preparava pra mais uma noite.