segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

EMPATIA.


Certo dia você acorda e descobre que não está conseguindo se mexer. 

Aliás, está difícil até mesmo se levantar da cama. Uma dor forte, parece aquela dor na coluna de quando você exagerava carregando peso ou ficava horas assentado em uma posição incômoda. Parece... mas... espera aí, é bem mais forte! Bem mais. Aliás, acho que não está doendo só  a coluna. Vou chamar a minha mãe, meu marido ou esposa, meu irmão, o Jaspion, sei lá, vou chamar os bombeiros. Socorro!

Todo mundo que sofre da espondilite anquilosante passa por alguma situação mais ou menos parecida. É o começo daquilo que vai mudar sua vida pra sempre, quer você queira, quer não; quer você aceite e lute, quer você se revolte e se entregue.

Ultimamente conheci tantas pessoas na mesma situação que resolvi escrever esse pequeno texto... sem a pretensão de ensinar ninguém, sem cientificismo. Isso a gente encontra aos montes pela internet afora.  Também não pretendo restringir o assunto à minha experiência. Apesar do que não posso evitar tratá-lo sob minha ótica personalíssima.

Apenas minha opinião sobre o preconceito e sobre esse começo tão difícil, que no meu caso logo vai fazer aniversário de 15 anos.

Sem baile. O Caio Castro tá com a agenda lotada, então a minha espondilite vai ter que dançar sozinha. Quer dizer: ela toca a música. Quem dança sou eu. Mas, se tenho que dançar, então danço à minha maneira.

A espondilite se manifesta de forma tão diversa quanto a personalidade das pessoas. Tem gente que fica ANOS convivendo com aquilo que acha ser uma dor nos ossos ou na coluna, controlável com analgésicos. Pra mais tarde cair naquela situação que eu descobri já na primeira manhã como doente crônico. Outras pessoas nunca sofrem grandes consequências, continua praticando esportes e levando uma vida normal.

Mas eu não estou exagerando. Nos casos mais agressivos, começa assim mesmo. Do dia pra noite. Você dorme de um jeito, acorda de outro.

Mais tarde, quando você para pra pensar bem, vai começar a encontrar alguns sinais,  fatos tão comuns que não serviriam de alerta exceto porque acabaram tendo mesmo ligação direta: dor de coluna frequente, algum problema respiratório (uma gripe longa, tosses incessantes), algum  problema nos olhos (uma conjuntivite longa, por exemplo) ou nos intestinos (uma diarreia inexplicável)... no meu caso foi uma soma: conjuntivite + tosses + um "torcicolo" que durou uns dois meses. 


Era o começo da "revolução do meu corpo contra ele mesmo".

Na maioria das vezes, as dores são na lombar... é aquela dor fortíssima nos nervos das pernas (ciático), aquela dificuldade pra se levantar ou abaixar, comigo foi meio atípico pescoço primeiro, o resto veio depois. E rapidamente. O torcicolo sumiu por uns tempos, mas depois daquela manhã, ele voltou com tudo. Todo o corpo doía, mas a cervical era o que mais incomodava. 

Nunca fui o mais flexível dos mortais. Mas conseguia fazer o básico: dar cambalhotas, assentar no chão, amarrar os sapatos... de repente me vi transformado no Robocop. Igualzinho: virando o corpo inteiro pra poder olhar ao redor.

Uma outra coisa que "descobri" nas minhas conversas com as pessoas: o fator emocional é DETERMINANTE. Sério. Nunca conheci um esponditítico que não tivesse passado por alguma emoção fortíssima no período imediatamente anterior à manifestação. E não estou falando só de emoções negativas não, apesar dessas serem a imensa maioria. Conheço gente que ficou ruim depois de receber uma notícia muito boa! Ironia fina. 

Outro fator comum a todos nós é a "via crucis" em busca de um diagnóstico e de um tratamento. Não vou entrar em detalhes nesse texto, porque minhas desventuras (e as de muitos amigos) estão espalhadas pelas outras postagens.

Viramos presa fácil de milagreiros, macumbeiros,  oportunistas e médicos despreparados.

Isso ainda acontece, mas, felizmente, um pouco menos, ano a ano. Graças a briga de muitos de nós pelo reconhecimento de que estamos todos (médicos, pacientes e sociedade) despreparados para diagnosticar ou para lidar com muitas doenças crônicas, ainda mais as auto-imunes, tão mutantes!

E, é claro, a face mais chata de tudo isso: o preconceito.

Não foi meu caso (ufa!), mas já me relataram situações tão absurdas quanto àquelas que alguns de nós que temos um pouco mais de idade acompanhamos quando do aparecimento - por exemplo - da AIDS.

Sério, tem gente que acha que espondilite pega com um toque ou ao se compartilhar um copo! São casos mais isolados e sem nexo, mas nem por isso inexistentes.

A maioria de nós sofre o preconceito profissional: viramos preguiçosos e lentos. Viramos mentirosos que "inventam" uma dor pra poder fugir das nossas responsabilidades. Fingidos profissionais. Já falei disso antes...

Ou as sanções sociais: ser um deficiente físico em uma sociedade concebida por e para quem não tem problemas de saúde.

Depender do auxílio do Estado quando a saúde pública está corrompida por casos falsos de doenças graves como a nossa - em busca da aposentadoria; por desvio de medicamentos; pelo mal caratismo de quem se aproveita daqueles que estão mais fracos.

Pagamos o preço da burocracia e das exigências absurdas, da demora para a concessão de uma aposentadoria por invalidez,  para o fornecimento de um medicamento de alto valor, na interrupção de um tratamento pelo desaparecimento do medicamento ou pelo medo.

Pagamos o preço até mesmo pela justificável dúvida de Juízes e Promotores em relação ao seu caso, receio de se envolver em um escândalo, em uma situação que garanta o gasto de centenas de milhares de reais com uma pessoa mal intencionada: o tratamento de um espondilítico com medicamentos biológicos chega a custar mais de 200 mil reais anuais para os cofres públicos.

Literalmente pagamos o preço pelos pecados alheios. Mas isso não se restringe à saúde pública.

Já soube, por outro lado, de casos de pessoas que recebiam os seus medicamentos e os repassavam a um preço "abaixo de tabela", pra ganhar uma grana com isso. Preferem morrer "ricos" a se tratar. Também quem se corrompe não ajuda em nada.

É um "outro lado da moeda" para o qual muitos de nós fecham os olhos ao reclamar em voz alta. Acredito de verdade que a aposentadoria por invalidez é tão difícil não por "maldade", mas por excesso de zelo. 

Mas nada dói mais do que quando isso se estende à opinião dos nossos entes mais próximos e mais queridos.

Felizmente, minha família é incrível e nunca deixou de me apoiar e de me ajudar em todos os momentos tão difíceis dessa minha caminhada manca. O mais próximo que cheguei disso foi ser deixado (ou abandonar, já que eu terminei a relação a contragosto) por minha namorada na época, que achou mais fácil me presentear com um par de chifres do que assumir que não teria forças pra lidar com uma pessoa tão "problemática" quanto eu.

Todavia, existe gente que sofre isso no dia a dia. Acusação e abandono por parte dos seus familiares, amigos, maridos ou esposas. Todos lavam as mãos  ao lidar com o "preguiçoso reclamão".

Como é chato ver a indignação triste de pessoas que não recebem o básico que se espera de quem nos ama: a compreensão.

Não a compreensão do que é a doença, dos detalhes clínicos, isso tudo é complicado mesmo para os médicos, mas a compreensão de que ali está uma pessoa que você ama e que precisa da sua ajuda, depende um pouco das suas forças, já que não pode mais contar com as próprias.

EMPATIA. Eis a palavra.

Eu já aguentei olhos acusadores de "amigos", de colegas de trabalho... mas não consigo conceber o sentimento dolorido de ter que aguentar esse tipo de suspeita dentro de casa. Vindo de quem deveria nos conhecer acima de tudo e de todos.

É inegável o fato de que os doentes crônicos também devem procurar fazer a sua parte. Não se entregar à total inatividade, não depender apenas do outro pra melhoria de sua condição. Guardar a reclamação pra quando esta se fizer realmente necessária.  Na vida, é tudo uma troca. Não espere um olhar transigente de quem você só trata com pedras nas mãos.

Se você é familiar, cônjuge (uma das palavras mais feias da língua portuguesa, segundo o Rubem Braga. E tem razão, o Mestre), amigo próximo de um doente crônico, leia esse texto de novo. Procure se colocar no lugar dele.

Tenha paciência com o choro, a lentidão, o mal humor e as reclamações.

Imagina de repente o que é ter uma "dor" doendo o tempo todo em todos os ossos do seu corpo. Ou o que é acordar inexplicavelmente prostrado,  por não saber que o seu sistema imunológico já consumiu sozinho boa parte de sua energia. Ou a frustração de depender das outras pessoas pra coisas tão simples quanto se vestir. Ou sofrer silenciosamente porque o seu problema é tão embaraçoso, íntimo e incômodo, que você não tem como expor.

A coisa piora quando o problema é "invisível", não aparece. Quem sofre com o mal de Crohm sabe exatamente do que eu estou falando.

Você fica mal humorado por uma dor de dente ou de cabeça. Distribui fel porque o trânsito estava ruim ou o seu chefe insinuou que você era incompetente. 

Que tal um olhar um pouquinho mais condescendente pra pessoa que está ali ao seu lado? Que só espera de você carinho, companheirismo, paciência e compreensão?

Eu sou um felizardo. Sou presenteado por aqueles que me cercam com tudo isso e muito mais.

Será por isso que minha aceitação das minhas limitações e dos meus problemas, o meu humor e positivismo, a minha força e persistência são tão aparentes? 



Porque eu sou assim não apenas por mim mesmo, mas também pelas pessoas que amo.

Pra que a luta de todos nós tenha algum sentido.


18 comentários:

  1. Heloisa Pinheiro Alves da Silva6 de fevereiro de 2012 às 19:20

    Xande, mais uma vez estou manifestando a minha admiração por este sobrinho tão querido.Dou-lhe a minha força pelas orações feitas com muita fé, e na certeza de que seremos atendidos.

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    1. Tia Lola, você não imagina como as coisas SEMPRE foram mais fáceis comigo (por mais doloridas) por poder contar com o apoio dos meus pais, dos meus irmãos e minha família da Fabi e dos meus amigos.
      Difícil mesmo seria se eu estivesse lutando sozinho, como tantos "irmãos" de grupo.
      Muito obrigado pelo carinho de SEMPRE.

      Beijo imenso.

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  2. Mônica Gonçalves Lantelme6 de fevereiro de 2012 às 19:21

    Xandão, me emocionei muito com o seu texto. Ele é muito claro e me espelhei nele como se cada momento da minha vida tivesse sido contado pra você. É triste, mas é a nossa realidade. Parabéns por mais um belíssimo texto!!!

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    1. Mônica, eu sempre repito isso: todos nós dividimos as várias faces de uma mesma experiência. Uma coisa é melhor pra alguns, outra mais dolorida para os outros, mas acabamos sempre reconhecendo um pouquinho da nossa estória espelhada na dos outros.
      Muito obrigado.

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  3. Mô, estarei sempre por aqui... na alegria e na tristeza, na saúde e na doença!

    Beijos, e parabéns! Belo texto!

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    1. Eu sei. Mesmo porque o prazo pra devolução já se esgotou... hehehe.

      Te amo!

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  4. Show esse texto!
    As lágrimas escorrem. O retrato do Espondilíaco!
    Valeu Xandão!!!
    Beijos,
    Karinna

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    1. Obrigado, Karinna.

      Temos tantas faces, né, e no final, nos descobrimos todos, irmãos.

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  5. Show de bola o texto, e nós que contamos com o apoio da familia passamos por tudo isso com um pouco menos de sofrimento..
    Parabens...

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  6. Sigo firme na leitura aqui, Xandão. Ansioso pelo próximo texto. Abraço!

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  7. Xande, parou?
    Parou por que?
    Trate de continuar. Estou com saudade. Beijos.

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    1. Vou continuar, Tia Lôla.
      Pode deixar.
      Mesmo que demore.

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  8. Queremos postagem, queremos postagem! Pô Xandão, 10 dias calado???

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    1. Só me faltava essa!
      HAHAHAHAH

      Paulo, às vezes rola uma entressafra criativa das brabas, meu amigo.

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  9. Esse seu texto tem que ser lido todos os dias!!! Abertura do blog! rsrsrs. A M O!!! Beijos, Karinna

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    1. Hehehe.

      Cada um elege um favorito... o meu é... não falo nem sob tortura. Palavras são coisinhas muito ciumentas.

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  10. sem palavras!
    mto boa a descrição dos sentimentos!

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  11. ps.: adorei essa frase: "Palavras são coisinhas muito ciumentas."

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