domingo, 22 de dezembro de 2024

CINEMA DE RUA

             

                        Cine Brasil, ao lado, o edifício onde funcionava o BEMGE


Não faz muito tempo eu e Fabi fomos ao cinema em Belo Horizonte.
A gente adora ir ao cinema, mas convenhamos, nem sempre conseguimos, pois na nossa realidade de cidade pequena isso significa uma viagem de pelo menos 60 km e na maior parte das vezes os filmes que queremos ver ou não estão em cartaz, ou exibem apenas a versão dublada (e eu sou aquele tipo de chato que insiste em ver sempre legendado, com o áudio original, pois gosto da interpretação e entonação do ator que fez o filme, mas não tenho críticas a quem gosta de assistir dublado, cada um na sua, o importante é assistir). E naquela pequena e moderna sala de Shopping Center (com menos de 300 lugares) bateu uma saudade enorme dos cinemas de rua. 
Também conhecidos como “cinemas de bairro”.
Belo Horizonte tinha dezenas deles, e que acontecimento e experiência era ir ao cinema!

Quem é mais jovem e só conhece os cinemas das grandes redes nos Shopping Centers jamais vai entender o que era assistir a um filme, por exemplo, no Cine Brasil lotado.
O maior, mais antigo e mais central dos cinemas de BH ficava na Praça Sete, em um prédio dos anos 30 em art déco, e acomodava mais de 2500 pessoas. Entre as minhas lembranças mais queridas está uma vez em que fui assistir no Cine Brasil, acompanhado da Vilma - moça que trabalhava lá em casa - a um filme dos Trapalhões. Os trapalhões na Serra Pelada. 1982.
Eu ainda não tinha 10 anos de idade, mas lembro-me nitidamente da enorme fila antes das portas se abrirem, e da minha mãe, sabe-se lá como descobriu a hora certinha, acenando pra gente lá do alto do Edifício do BEMGE, no outro lado da avenida Amazonas, onde trabalhava. Lembro com carinho do barulho dos vendedores no cinema sacudindo as caixas de Mentex, das risadas simultâneas de 2000 pessoas que faziam a experiência de assistir a um filme ter a sensação de um jogo de futebol no estádio!
Até onde sei o Cine Brasil foi restaurado e hoje é um teatro e centro cultural com uma programação incrível. Acho que se voltar lá algum dia não vou conseguir controlar as lágrimas...

Eu não frequentei o cine Metrópole, na Rua da Bahia, lembro-me vagamente daquele prédio “diferente”, que lembrava até um castelinho (todo em art deco) e que foi demolido no começo dos anos 80.

                                                      Cine Metrópole, foto de 1978


Mas conheci o cine Jaques, outro “gigante” com 1800 lugares, que ficava na Rua dos Tupis. Nas suas poltronas verdes eu assisti em 1991 o filme Ghost, um sucesso tremendo, muitas semanas em cartaz, lembro que fui nos últimos dias de exibição e ainda estava lotado. Um ano depois o cinema seria demolido pra virar parte do que hoje é o Shopping Cidade.
Muito tempo depois fiquei sabendo que esse mesmo cinema antes chamava-se Cine Tupi e foi o lugar onde o Milton Nascimento e o Marcio Borges assistiram por muitas sessões seguidas ao filme Jules et Jim do Truffault e saíram de lá empolgados pra criar nada menos que o movimento musical que seria conhecido como CLUBE DA ESQUINA!
Ao entrar nesse shopping no centro de BH, lembre-se que estará pisando em solo sagrado.

          Cine Jacques, antigo cine Tupi. Foto de uma das últimas sessões em 1991

Havia o Cine Pathé na Cristóvão Colombo, no coração da Savassi, onde assisti - entre tantos filmes – Aliens, o Resgate. Provavelmente foi o cinema que mais frequentei, pela facilidade e proximidade, da casa dos meus avós paternos na rua Leopoldina, no Santo Antônio dava pra ir à pé, uma curta caminhada por uma mais que aprazível Savassi arborizada e completamente vazia. Sério, aos domingos – dia tradicional de ir ao cinema - mesmo o trânsito era raro, isso numa das regiões mais movimentadas da cidade! Fiquei muito triste quando foi transformado em um estacionamento! Hoje não sei o que funciona no local. O prédio está decadente, bem merecia uma revitalização. 


                              Cine Pathé, foto recente, ainda funcionando como estacionamento


E o Cine Acaiaca?
Que tinha uma entrada pequena e estreita que disfarçava sua capacidade pra mais de 800 pessoas. Se o filme em cartaz era de sucesso, a fila - e a confusão - eram certas. Fazia parte do charme.
O prédio que o abrigava era e é incrível, já foi e talvez ainda seja o mais alto da cidade (com um elevador tão rápido que subia os 25 andares em absurdos 20 segundos!) todo construído no estilo art deco, com enormes efígies indígenas na fachada, que dava ares de Gotham City.
Tenho muito carinho e excelentes lembranças desse cinema, onde assisti O Retorno de Jedi em 1983.
Mas é um prédio ao redor que mais se destaca, cheio de curiosidades, foi onde aprendi a datilografar (a escola ficava no terceiro andar, a gente subia por uma escadinha adjacente muito apertada que saía da lateral esquerda do corredor de acesso ao cinema, e foi também onde visitei, pela primeira e única vez na minha vida, um “abrigo anti-aéreo”, que existe até hoje.
Explico: o prédio, de 1942, obedecia a um decreto do Presidente Getulio Vargas que, no auge da segunda guerra mundial, orientava a construção desses abrigos, temendo um ataque aéreo das forças do eixo!
O cinema, salvo engano hoje é uma igreja evangélica, triste sina compartilhada com tantos outros.


                                                             Entrada do cine Acaiaca


O cine Palladium ficava no centro, na Avenida Augusto de Lima e era o mais luxuoso dos cinemas de BH, com suas grandes poltronas vermelhas, e eu sempre tinha a impressão de que tinha o melhor som e imagem da cidade. Anos depois li uma matéria onde um especialista confirmava isso.
Foi onde assisti o primeiro Karate Kid em 1984, e também foi onde assisti com quase todos os meus amigos ao primeiro filme do Batman, em 1989, um grupo de mais de 10 pessoas compartilhando aquela experiência! Tenho uma lembrança muito boa de descer com alguns deles depois do filme, rumo à avenida Afonso Pena onde pegaria o ônibus pra voltar pra casa, empolgado com o coringa do Jack Nicholson e com as cores fechadas e sombras do Tim Burton. Hoje virou um espaço cultural incrível, dirigido pelo Sesc.

                             Cine Palladium - foto do começo dos anos 80

O Art Palácio ficava no centrão, na rua Curitiba, entre as ruas Carijós e Tupinambás: nossa Capital planejada tem essa curiosidade, no Centro, as ruas em determinado sentido homenageiam capitais e estados, no outro, tribos indígenas. Nos bairros, Rios e minerais também eram homenageados. No meu bairro e bairros próximos na região sul, por exemplo, boa parte das ruas tem nome de minerais – a rua onde nasci e minha mãe mora até hoje é a Albita, cruzando com ruas que homenageiam cidades Mineiras.
O Art Palácio também era enorme, com mais de 1000 lugares e até hoje tenho um trauma de infância ao lembrar uma vez que fui barrado em um filme em 1983: “Thunder, o homem trovão”, um genérico italiano dos filmes do Rambo.
 A censura era 12 anos, eu tinha quase 11, meu pai me deixou na porta do cinema (quando o filme era uma “Bomba” ele espertamente combinava de me deixar no cinema e me buscar ao fim da sessão), o senhor da bilheteria desconfiou do meu nervosismo e perguntou minha idade... tímido e medroso, suei, tremi e gaguejei e fui devidamente barrado.

- Você não tem idade né?
- Tenho sim.
- Que ano você nasceu?
 Silêncio (tava tão nervoso que errei as contas...)
- Viu? Não tem idade.
- Moço, me deixa entrar, eu tenho 11 anos (arredondava já em voz chorosa).
- Não posso, menino. Esse filme não é pra você!

Que lástima! Voltei cabisbaixo pro corcel 2 vermelho do meu pai, que ainda riu do fato que eu esqueci minha data de nascimento...  Alguns anos depois alugamos a fita VHS, e constatamos: o filme era uma tremenda porcaria!
Mas na época o fato me deixou arrasado, trata-se da minha segunda pior experiência cinematográfica, só perdia pra estreia do Superman 1, no cinema de Pouso Alegre. A censura era 10 anos, eu tinha apenas 6, tristemente observei meus primos mais velhos entrando no cinema... esse eu só fui assistir anos depois, quando passou na Rede Globo, e até hoje não entendo o motivo da censura. Era 1978, ditadura agonizando (foi o ano em que revogaram o AI-5), mas ainda dando as cartas... 
Hoje esse tão querido cinema de Belo Horizonte é uma loja da rede de eletrodomésticos Ponto Frio, que mantém em seu segundo andar uma pequena exposição com as máquinas do cinema que aquela casa um dia abrigou. 


                                                           Cine Art Palacio, anos 80

Do Savassi Cineclube, que ficava na rua Levindo Lopes, no Funcionários (que é o nome oficial da Savassi) e era uma sala pequena, com menos de 200 lugares,eu tenho lembranças de fim de adolescência e início de vida adulta, foi onde assisti alguns filmes que me marcaram pra vida toda: Betty Blue (filme francês de 1986, saí do filme completa e platonicamente apaixonado pela Beatrice Dalle e no dia seguinte comprei o LP da trilha sonora que tenho até hoje), Sonhos (do Kurosawa) e Ata-me (filme de 1990, com o Antonio Banderas novinho, foi meu primeiro filme do Almodóvar e nunca deixei de ver outro). 
Foi o lugar que me apresentou o cinema alemão, italiano, francês, japonês, marroquino, um mundo inteiro que existia fora do universo de Hollywood. 
Ir a um espaço tão pequeno e compartilhar a experiência com um grupo tão restrito de pessoas, participar (calado, como ouvinte) dos debates que muitas vezes se seguiam aos filmes, me fazia imaginar estar cercado pelas pessoas mais cultas da cidade, e, como uma esponja, sempre me sentia um pouco mais “inteligente” após as sessões... que bobagem né! 
Mas tenho lembranças muito queridas dessa época, foram sessões que ajudaram a me formar como cinéfilo. 

                                                 Entrada do Savassi Cineclube nos anos 90. 

E o Cine México? Ficava na rua Oiapoque, centro profundo de BH. Nesse, confesso, eu nunca entrei, afinal tratava-se do mais infame “cinema adulto” de Belo Horizonte! Só o letreiro na fachada com o nome das “atrações” já deixava muita gente com a cara avermelhada...

Sempre que a gente passava em frente eu esticava o pescoço, tentando ver o cartaz do filme (ou filmes, já que normalmente eram sessões duplas, filmes adultos dividindo espaço com filmes de Kung fu ) e recebia o “pito” divertido do meu pai:

 - tá olhando o quê, menino? 
 – o filme de Kung fu, pai. 
 - Sei... filme de Kung Fu, né! 

Quem diria que poucos anos depois bastaria ligar de madrugada na TV Bandeirantes pra assistir praticamente a mesma coisa, a “Sessão Faixa Preta” dividindo espaço e horário em dias alternados com o “cine Privé”. 

                      Cine México e seus letreiros de fazer "avermelhar os rostos mais inocentes". 
                                                                        Anos 80.


Existiram tantos outros Cinemas de Bairro! Alguns ainda persistem, como o Cine Santa Tereza, no bairro de mesmo nome. Outros mantém a sua vocação cultural: por exemplo o Cine Horto, que conheci já como sede do Grupo de Teatro Galpão.  

E esse saudosismo também se estende pra outras cidades, eu mesmo sou um dos afortunados que já assistiu a um filme no Cine Rio Branco de Varginha, por exemplo, impressionado com as cadeiras reclináveis do mezanino. 
Mas isso é história pra outro conto.



quinta-feira, 31 de outubro de 2024

       ENOE



        Na minha infância eu convivi, por muitos anos, com uma Bruxa.

        Ela era amiga dos meus pais, morava em Belo Horizonte, em uma casa grande no final do quarteirão (a casa ainda está lá, virou uma clínica de cirurgia plástica), viúva, tinha 4 filhos (o mais novo, Cristiano, tinha a minha idade e era um amigo muito querido).

        Tinha uma beleza exótica, uma cabeleira imensa muito preta, assim como os olhos. Se vestia com cores escuras (roxo, preto, vermelho escuro) e jóias, anéis, colares, pulseiras douradas. Minha mãe me contava que ela era de uma família cigana. Chamava-se Enoe, e eu nunca mais encontrei outra de mesmo nome.

        Enoe era alegre, perfumada, de gestos grandes mas voz calma. Sua casa parecia mesmo um lugar mágico, cheia de gente, de arte, objetos curiosos e liberdade, cada cômodo era pintado de uma cor, a gosto do filho que ali habitava. Um deles era um artista plástico muito talentoso, inclusive.

        Um dia ela se mudou da minha rua, pra um bairro mais distante, um prédio muito grande numa rua sem saída. A amizade continuou e a gente a visitava bastante, ainda mais que o condomínio tinha uma piscina imensa, onde a criançada se esbaldava.

        Mais tarde se mudou pro Rio de Janeiro e pouco tempo depois, para Cabo Frio, onde também visitávamos com frequência.

        Um dia ela e Cristiano foram viajar conosco pra Furnas, meu pai era sócio de um Camping perto de Formiga.         Ficamos todos em um chalé, bem afastado da sede.

        Numa noite chuvosa, Enoe resolveu ler mãos e tarô pra todos nós.
        Veja bem, eu tinha uns 10 anos, 11 se muito.
        Ela pegou minha mão. Passava a unha do indicador, muito grande e vermelha em cada uma das linhas.
        - eu vou casar?
        - Vai.
        -E eu vou ter quantos filhos?
        - talvez um. Tem uma linhazinha aqui do lado do seu dedinho que tá meio cortada. Pode ser que não.

        E continuou, contou que eu não ia morar em Belo Horizonte, que eu ia ter um carro muito bonito (mas que ela não sabia o nome ou a marca) e que eu ia adoecer e não ia ter cura, mas não ia morrer disso. Que eu ia viver bem e feliz
        - Vou ficar mais velho que o papai? (ele não tinha 40 anos então, já separado da minha mãe, acho ate que teve um "teretetê" com a Bruxa)
- Vai.

        Criança, nem perdi o sonho com essas coisas tão vagas e distantes. Talvez vez ou outra pensasse no tal carro bonito.
O tempo passou e perdemos contato, embora muitas coincidências sempre me trouxessem a memória deles.

        Quarenta anos mais tarde, em Monsenhor Paulo, com mais de 50 anos de idade, casado e sem filhos, brigando com a espondilite, essa lembrança me veio à mente.

        Nunca mais nos encontramos e continuo lembrando deles com um carinho imenso.
        Por causa dela cresci imaginando que as bruxas são perfumadas, gentis, independentes e livres. 

        Um beijo imenso pra Enoe e pra todas as “bruxas”!


                                                                     A "casa da bruxa" atualmente.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

ZEZÉ

 


Eu deveria estar preocupado com o que ele encostava na minha barriga, fosse faca, canivete ou caco de vidro. A bem da verdade podia até ser um galho ou um lápis, o dedo eu sei que não era, porque não havia calor. Era frio e parecia pontudo e afiado. Mas não parava de pensar nos cigarros.

Maldita a hora que eu resolvi cortar caminho pela rua Oliveira, voltando da padaria a rua Vitório Marçola era bem mais movimentada, bem mais segura, mas eu precisava chegar rápido. Ou ela iria me castigar, me fazer ajoelhar no milho em frente à Televisão e rezar a Ave Maria do programa do Dirceu Pereira.

- Moço, pode levar o pão e o leite, pode até levar o troco, mas pelo amor de Deus, não leva os cigarros.

O facínora riu e obedeceu. Talvez achando graça naquela criança magrela de 6 anos de idade, pedindo com voz chorosa pra ficar com um maço de cigarros.

- Você é muito pequeno pra fumar, menino. Vai acabar doente.

Quatro pães de sal, um saco de leite tipo C, um punhado de moedas e uma nota bastante gasta de 5 cruzeiros, num azul meio desbotado onde aparecia o “retrato” do Dom Pedro I jovem e de bigode fino, com cara de quem estava morrendo de tédio, bem diferente (pensava eu então) do “pai dele”, o Dom Pedro II, a estrela daquela nota cinza esverdeada de dez cruzeiros que ostentava uma barba de respeito, digna de Papai Noel. Eis o prejuízo do primeiro assalto que sofri na vida. Mas o importante é que os cigarros ele deixou. Um maço de Minister azul, branco e dourado, com toda certeza mais fedorento do que aquela marca que minha mãe fumava sem parar.

O pão, o leite e o troco eram da minha mãe. O cigarro não. O cigarro era da Zezé e eu sabia que tinha sido corajoso e por isso não iria apanhar nem ser castigado quando chegasse em casa com a má notícia.

Era muito branca, a Zezé.

A meus olhos de criança era imensa, muito alta e muito gorda, com olhos muito azuis em um rosto arredondado e de lábios finos que nunca relaxavam, nunca se abriam num sorriso. Naquele momento, em 1978, eu a conhecia e temia há quase dois anos, um terço da minha vida, desde que meus pais se separaram e minha mãe, que trabalhava o dia todo no Bemge da Praça Sete, precisou de uma empregada que cuidasse da casa e olhasse as crianças depois que chegassem da pré escola.

Instituto Maria Amália. Como eu adorava aquela escola! Ia pra lá desde o maternal, com um ano de idade, lá aprendi a ler bem novinho, a fazer fila pra ir pra sala ao som de uma canção que sei cantar até hoje, lá aprendi que o cheiro de álcool na folha do dever de casa, fresquinha do mimeógrafo, deixava a gente “alegrão”. A escola ficava a poucos quarteirões da minha casa, e naquela Belo Horizonte dos anos 1970 eu já não precisava que me buscassem depois da aula, embora minha mãe sempre me deixasse lá bem cedo, indo pro trabalho em uma Variant que tinha a cor igualzinha ao patê de fígado de pato que serviam junto com os pães no antipasto do restaurante italiano que meu pai mais amava, o Dona Derna.

Algumas vezes eu chegava da escola e esperava a minha mãe voltar do trabalho, almoçar conosco e sair de novo. Outras eu recebia o aviso de que ela não viria, que nós iríamos almoçar assentados na sala de tv, não “carecia” arrumar a mesa.

 Todas as vezes, depois do almoço e da partida da minha mãe, a ordem era a de ficar bem quietinho, ver televisão baixinho, ler um livro infantil ou brincar no quarto com as portas fechadas. Quebrar as regras significava apanhar ou então, a temida Ave Maria. Eu detestava o Dirceu Pereira. Detestava aquele programa brega que interrompia a sua programação ridícula todos os dias às seis da tarde só pra me penitenciar na frente de uma televisão preto e branco de tubo, muitas vezes ajoelhado no milho ou no feijão, um minuto interminável.

- Você tem que rezar alto, pra eu escutar. E se não fizer o que eu mandar vai apanhar e depois vai apanhar da sua mãe, pois é em mim que ela vai acreditar. Se você contar pra sua mãe ela vai te bater também, porque você foi desobediente.

Eu acreditava. E rezava fervorosamente praquela imagem na televisão, pedia pra crescer rápido e deixar de ser magrelo, e um dia poder socar o meu carrasco. Mas o que acontecia de verdade era eu ter muito medo. Medo de entrar sozinho na cozinha e encontra-la lá, medo daquele quarto de empregada pequeno e escuro, sempre fechado e enfumaçado, na minha imaginação infantil era como a cova de um dragão terrível.

Eu não entendi porque a Zezé muitas vezes andava nua pela casa. Era um apartamento cheio de janelas e com vizinhos próximos, eu tinha vergonha de ficar de cuecas, quanto mais pelado como ela. Ela tinha seios enormes e pesados com veias muito azuis, pernas cabeludas e quase nenhum cabelo lá embaixo. Não sei o quanto dessa estória toda eu bloqueio e sabe-se lá do que lembraria se me esforçasse. Prefiro não pensar nisso.

Houve um dia, não sei por qual motivo, em que a Zezé me levou à casa dela, e para isso precisamos pegar dois ônibus, descer em um ponto de ônibus perto da Hípica na cidade vizinha de Contagem e praticamente atravessar o bairro Riacho das Pedras até o que parecia ser um aglomerado de barracos. Lá conheci sua mãe e seu filho, tomei banho de bacia com água esquentada na fogueira e brinquei descalço em um descampado cheio de lixo ao lado de um riacho que nunca vou saber se é o que emprestava o nome ao bairro. Também descobri que o meu Batmóvel de brinquedo que tinha sumido – e me legado uma surra por parte da minha mãe - tinha sido “incorporado” aos brinquedos do filho da Zézé, Vi e fiquei calado.

Nesse dia ela não me bateu. Nem levantou a voz.

Dias e meses se passaram e aquele inferno parecia que não ia terminar. Tímido e medroso, eu tinha receio de contar pro meu pai e ele brigar com a minha mãe. Tinha medo de contar pra minha mãe e ela agir exatamente como a Zezé ameaçava. Um dilema insolúvel aos seis anos de idade...

Até que me lembrei do Batmóvel. Ora, se ela pegou um brinquedo meu, também poderia ter pego outras coisas.

Minha mãe sempre teve uma multitude de anéis, bijuterias imensas e coloridas, em voga tanto nos anos 70 quanto hoje. Havia um anel em especial, vermelho ou alaranjado, que chamava muita atenção. Numa sexta feira aproveitei que a Zezé estava no banho, e como que em uma operação de guerrilha peguei aquele anel, entrei em seu quarto e coloquei em sua bolsa. E ela foi embora levando o meu “presente”. Poucas vezes na minha vida senti tanto medo e tanta vergonha.

Não demorou muito tempo pra ela não mais aparecer lá em casa.

Minha mãe – que nunca foi a mais contida das pessoas – conta que descobriu que ela estava roubando e a mandou embora. A história como ela conta é bem menos civilizada e mais raivosa que esse resumo, acreditem.

Meu irmão tinha apenas 3 anos e eu fico feliz que ele não se lembre dessa época. Na maior parte do tempo ele ficava brincando, dormindo ou vendo desenhos animados, nunca apanhou da Zezé porque demorou pra entrar ou sair do banho, por ter deixado sobrar comida no prato ou porque riu alto de alguma coisa. Eu nunca contei essa história pra ele, pra minha mãe ou pro meu pai.  Na verdade, até agora, só a minha esposa sabia. A mim sempre soou uma história sofrida e exagerada, um conto melodramático de Dickens às avessas, abrasileirado e mal adaptado ao século 20.

Bem mais tarde, um grande amigo alguns anos mais velho, começou a trabalhar como radialista em Betim. Rádio Liberdade FM. Aos 16 anos, aquilo me parecia o máximo. Trabalhar como radialista numa rádio alternativa (que terminou os dias como emissora sertaneja). O horário, como todo iniciante, não era dos melhores: meia noite às 4 da manhã, sem direito a locução. Entre muitas idas acompanhando, acabei fazendo amigos e até arrumei um “affair” por lá, que um dia me convidou pra um churrasco no fim de semana. Fui de ônibus, que calhou de ter uma parada naquele mesmo fatídico ponto do Riacho das Pedras em Contagem. Olhei pra fora e congelei.

Bem ali, debaixo da minha janela, estava a Zezé. Em pé próximo ao ponto, comprando laranjas de um vendedor num carrinho daqueles que tinha uma geringonça pra descascar a fruta e tirar a casca em uma aspiral perfeita. Da janela do ônibus olhei pra ela. Ela olhou de volta, com aqueles olhos muito azuis.

E sorriu.