quinta-feira, 31 de outubro de 2024

       ENOE



        Na minha infância eu convivi, por muitos anos, com uma Bruxa.

        Ela era amiga dos meus pais, morava em Belo Horizonte, em uma casa grande no final do quarteirão (a casa ainda está lá, virou uma clínica de cirurgia plástica), viúva, tinha 4 filhos (o mais novo, Cristiano, tinha a minha idade e era um amigo muito querido).

        Tinha uma beleza exótica, uma cabeleira imensa muito preta, assim como os olhos. Se vestia com cores escuras (roxo, preto, vermelho escuro) e jóias, anéis, colares, pulseiras douradas. Minha mãe me contava que ela era de uma família cigana. Chamava-se Enoe, e eu nunca mais encontrei outra de mesmo nome.

        Enoe era alegre, perfumada, de gestos grandes mas voz calma. Sua casa parecia mesmo um lugar mágico, cheia de gente, de arte, objetos curiosos e liberdade, cada cômodo era pintado de uma cor, a gosto do filho que ali habitava. Um deles era um artista plástico muito talentoso, inclusive.

        Um dia ela se mudou da minha rua, pra um bairro mais distante, um prédio muito grande numa rua sem saída. A amizade continuou e a gente a visitava bastante, ainda mais que o condomínio tinha uma piscina imensa, onde a criançada se esbaldava.

        Mais tarde se mudou pro Rio de Janeiro e pouco tempo depois, para Cabo Frio, onde também visitávamos com frequência.

        Um dia ela e Cristiano foram viajar conosco pra Furnas, meu pai era sócio de um Camping perto de Formiga.         Ficamos todos em um chalé, bem afastado da sede.

        Numa noite chuvosa, Enoe resolveu ler mãos e tarô pra todos nós.
        Veja bem, eu tinha uns 10 anos, 11 se muito.
        Ela pegou minha mão. Passava a unha do indicador, muito grande e vermelha em cada uma das linhas.
        - eu vou casar?
        - Vai.
        -E eu vou ter quantos filhos?
        - talvez um. Tem uma linhazinha aqui do lado do seu dedinho que tá meio cortada. Pode ser que não.

        E continuou, contou que eu não ia morar em Belo Horizonte, que eu ia ter um carro muito bonito (mas que ela não sabia o nome ou a marca) e que eu ia adoecer e não ia ter cura, mas não ia morrer disso. Que eu ia viver bem e feliz
        - Vou ficar mais velho que o papai? (ele não tinha 40 anos então, já separado da minha mãe, acho ate que teve um "teretetê" com a Bruxa)
- Vai.

        Criança, nem perdi o sonho com essas coisas tão vagas e distantes. Talvez vez ou outra pensasse no tal carro bonito.
O tempo passou e perdemos contato, embora muitas coincidências sempre me trouxessem a memória deles.

        Quarenta anos mais tarde, em Monsenhor Paulo, com mais de 50 anos de idade, casado e sem filhos, brigando com a espondilite, essa lembrança me veio à mente.

        Nunca mais nos encontramos e continuo lembrando deles com um carinho imenso.
        Por causa dela cresci imaginando que as bruxas são perfumadas, gentis, independentes e livres. 

        Um beijo imenso pra Enoe e pra todas as “bruxas”!


                                                                     A "casa da bruxa" atualmente.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

ZEZÉ

 


Eu deveria estar preocupado com o que ele encostava na minha barriga, fosse faca, canivete ou caco de vidro. A bem da verdade podia até ser um galho ou um lápis, o dedo eu sei que não era, porque não havia calor. Era frio e parecia pontudo e afiado. Mas não parava de pensar nos cigarros.

Maldita a hora que eu resolvi cortar caminho pela rua Oliveira, voltando da padaria a rua Vitório Marçola era bem mais movimentada, bem mais segura, mas eu precisava chegar rápido. Ou ela iria me castigar, me fazer ajoelhar no milho em frente à Televisão e rezar a Ave Maria do programa do Dirceu Pereira.

- Moço, pode levar o pão e o leite, pode até levar o troco, mas pelo amor de Deus, não leva os cigarros.

O facínora riu e obedeceu. Talvez achando graça naquela criança magrela de 6 anos de idade, pedindo com voz chorosa pra ficar com um maço de cigarros.

- Você é muito pequeno pra fumar, menino. Vai acabar doente.

Quatro pães de sal, um saco de leite tipo C, um punhado de moedas e uma nota bastante gasta de 5 cruzeiros, num azul meio desbotado onde aparecia o “retrato” do Dom Pedro I jovem e de bigode fino, com cara de quem estava morrendo de tédio, bem diferente (pensava eu então) do “pai dele”, o Dom Pedro II, a estrela daquela nota cinza esverdeada de dez cruzeiros que ostentava uma barba de respeito, digna de Papai Noel. Eis o prejuízo do primeiro assalto que sofri na vida. Mas o importante é que os cigarros ele deixou. Um maço de Minister azul, branco e dourado, com toda certeza mais fedorento do que aquela marca que minha mãe fumava sem parar.

O pão, o leite e o troco eram da minha mãe. O cigarro não. O cigarro era da Zezé e eu sabia que tinha sido corajoso e por isso não iria apanhar nem ser castigado quando chegasse em casa com a má notícia.

Era muito branca, a Zezé.

A meus olhos de criança era imensa, muito alta e muito gorda, com olhos muito azuis em um rosto arredondado e de lábios finos que nunca relaxavam, nunca se abriam num sorriso. Naquele momento, em 1978, eu a conhecia e temia há quase dois anos, um terço da minha vida, desde que meus pais se separaram e minha mãe, que trabalhava o dia todo no Bemge da Praça Sete, precisou de uma empregada que cuidasse da casa e olhasse as crianças depois que chegassem da pré escola.

Instituto Maria Amália. Como eu adorava aquela escola! Ia pra lá desde o maternal, com um ano de idade, lá aprendi a ler bem novinho, a fazer fila pra ir pra sala ao som de uma canção que sei cantar até hoje, lá aprendi que o cheiro de álcool na folha do dever de casa, fresquinha do mimeógrafo, deixava a gente “alegrão”. A escola ficava a poucos quarteirões da minha casa, e naquela Belo Horizonte dos anos 1970 eu já não precisava que me buscassem depois da aula, embora minha mãe sempre me deixasse lá bem cedo, indo pro trabalho em uma Variant que tinha a cor igualzinha ao patê de fígado de pato que serviam junto com os pães no antipasto do restaurante italiano que meu pai mais amava, o Dona Derna.

Algumas vezes eu chegava da escola e esperava a minha mãe voltar do trabalho, almoçar conosco e sair de novo. Outras eu recebia o aviso de que ela não viria, que nós iríamos almoçar assentados na sala de tv, não “carecia” arrumar a mesa.

 Todas as vezes, depois do almoço e da partida da minha mãe, a ordem era a de ficar bem quietinho, ver televisão baixinho, ler um livro infantil ou brincar no quarto com as portas fechadas. Quebrar as regras significava apanhar ou então, a temida Ave Maria. Eu detestava o Dirceu Pereira. Detestava aquele programa brega que interrompia a sua programação ridícula todos os dias às seis da tarde só pra me penitenciar na frente de uma televisão preto e branco de tubo, muitas vezes ajoelhado no milho ou no feijão, um minuto interminável.

- Você tem que rezar alto, pra eu escutar. E se não fizer o que eu mandar vai apanhar e depois vai apanhar da sua mãe, pois é em mim que ela vai acreditar. Se você contar pra sua mãe ela vai te bater também, porque você foi desobediente.

Eu acreditava. E rezava fervorosamente praquela imagem na televisão, pedia pra crescer rápido e deixar de ser magrelo, e um dia poder socar o meu carrasco. Mas o que acontecia de verdade era eu ter muito medo. Medo de entrar sozinho na cozinha e encontra-la lá, medo daquele quarto de empregada pequeno e escuro, sempre fechado e enfumaçado, na minha imaginação infantil era como a cova de um dragão terrível.

Eu não entendi porque a Zezé muitas vezes andava nua pela casa. Era um apartamento cheio de janelas e com vizinhos próximos, eu tinha vergonha de ficar de cuecas, quanto mais pelado como ela. Ela tinha seios enormes e pesados com veias muito azuis, pernas cabeludas e quase nenhum cabelo lá embaixo. Não sei o quanto dessa estória toda eu bloqueio e sabe-se lá do que lembraria se me esforçasse. Prefiro não pensar nisso.

Houve um dia, não sei por qual motivo, em que a Zezé me levou à casa dela, e para isso precisamos pegar dois ônibus, descer em um ponto de ônibus perto da Hípica na cidade vizinha de Contagem e praticamente atravessar o bairro Riacho das Pedras até o que parecia ser um aglomerado de barracos. Lá conheci sua mãe e seu filho, tomei banho de bacia com água esquentada na fogueira e brinquei descalço em um descampado cheio de lixo ao lado de um riacho que nunca vou saber se é o que emprestava o nome ao bairro. Também descobri que o meu Batmóvel de brinquedo que tinha sumido – e me legado uma surra por parte da minha mãe - tinha sido “incorporado” aos brinquedos do filho da Zézé, Vi e fiquei calado.

Nesse dia ela não me bateu. Nem levantou a voz.

Dias e meses se passaram e aquele inferno parecia que não ia terminar. Tímido e medroso, eu tinha receio de contar pro meu pai e ele brigar com a minha mãe. Tinha medo de contar pra minha mãe e ela agir exatamente como a Zezé ameaçava. Um dilema insolúvel aos seis anos de idade...

Até que me lembrei do Batmóvel. Ora, se ela pegou um brinquedo meu, também poderia ter pego outras coisas.

Minha mãe sempre teve uma multitude de anéis, bijuterias imensas e coloridas, em voga tanto nos anos 70 quanto hoje. Havia um anel em especial, vermelho ou alaranjado, que chamava muita atenção. Numa sexta feira aproveitei que a Zezé estava no banho, e como que em uma operação de guerrilha peguei aquele anel, entrei em seu quarto e coloquei em sua bolsa. E ela foi embora levando o meu “presente”. Poucas vezes na minha vida senti tanto medo e tanta vergonha.

Não demorou muito tempo pra ela não mais aparecer lá em casa.

Minha mãe – que nunca foi a mais contida das pessoas – conta que descobriu que ela estava roubando e a mandou embora. A história como ela conta é bem menos civilizada e mais raivosa que esse resumo, acreditem.

Meu irmão tinha apenas 3 anos e eu fico feliz que ele não se lembre dessa época. Na maior parte do tempo ele ficava brincando, dormindo ou vendo desenhos animados, nunca apanhou da Zezé porque demorou pra entrar ou sair do banho, por ter deixado sobrar comida no prato ou porque riu alto de alguma coisa. Eu nunca contei essa história pra ele, pra minha mãe ou pro meu pai.  Na verdade, até agora, só a minha esposa sabia. A mim sempre soou uma história sofrida e exagerada, um conto melodramático de Dickens às avessas, abrasileirado e mal adaptado ao século 20.

Bem mais tarde, um grande amigo alguns anos mais velho, começou a trabalhar como radialista em Betim. Rádio Liberdade FM. Aos 16 anos, aquilo me parecia o máximo. Trabalhar como radialista numa rádio alternativa (que terminou os dias como emissora sertaneja). O horário, como todo iniciante, não era dos melhores: meia noite às 4 da manhã, sem direito a locução. Entre muitas idas acompanhando, acabei fazendo amigos e até arrumei um “affair” por lá, que um dia me convidou pra um churrasco no fim de semana. Fui de ônibus, que calhou de ter uma parada naquele mesmo fatídico ponto do Riacho das Pedras em Contagem. Olhei pra fora e congelei.

Bem ali, debaixo da minha janela, estava a Zezé. Em pé próximo ao ponto, comprando laranjas de um vendedor num carrinho daqueles que tinha uma geringonça pra descascar a fruta e tirar a casca em uma aspiral perfeita. Da janela do ônibus olhei pra ela. Ela olhou de volta, com aqueles olhos muito azuis.

E sorriu.