Eu deveria estar
preocupado com o que ele encostava na minha barriga, fosse faca, canivete ou
caco de vidro. A bem da verdade podia até ser um galho ou um lápis, o dedo eu
sei que não era, porque não havia calor. Era frio e parecia pontudo e afiado. Mas
não parava de pensar nos cigarros.
Maldita a hora que eu
resolvi cortar caminho pela rua Oliveira, voltando da padaria a rua Vitório
Marçola era bem mais movimentada, bem mais segura, mas eu precisava chegar
rápido. Ou ela iria me castigar, me fazer ajoelhar no milho em frente à Televisão
e rezar a Ave Maria do programa do Dirceu Pereira.
- Moço, pode levar o pão
e o leite, pode até levar o troco, mas pelo amor de Deus, não leva os cigarros.
O facínora riu e
obedeceu. Talvez achando graça naquela criança magrela de 6 anos de idade,
pedindo com voz chorosa pra ficar com um maço de cigarros.
- Você é muito pequeno
pra fumar, menino. Vai acabar doente.
Quatro pães de sal, um
saco de leite tipo C, um punhado de moedas e uma nota bastante gasta de 5
cruzeiros, num azul meio desbotado onde aparecia o “retrato” do Dom Pedro I jovem
e de bigode fino, com cara de quem estava morrendo de tédio, bem diferente (pensava
eu então) do “pai dele”, o Dom Pedro II, a estrela daquela nota cinza
esverdeada de dez cruzeiros que ostentava uma barba de respeito, digna de Papai
Noel. Eis o prejuízo do primeiro assalto que sofri na vida. Mas o importante é
que os cigarros ele deixou. Um maço de Minister azul, branco e dourado, com
toda certeza mais fedorento do que aquela marca que minha mãe fumava sem parar.
O pão, o leite e o troco
eram da minha mãe. O cigarro não. O cigarro era da Zezé e eu sabia que tinha
sido corajoso e por isso não iria apanhar nem ser castigado quando chegasse em
casa com a má notícia.
Era muito branca, a Zezé.
A meus olhos de criança
era imensa, muito alta e muito gorda, com olhos muito azuis em um rosto
arredondado e de lábios finos que nunca relaxavam, nunca se abriam num sorriso.
Naquele momento, em 1978, eu a conhecia e temia há quase dois anos, um terço da
minha vida, desde que meus pais se separaram e minha mãe, que trabalhava o dia
todo no Bemge da Praça Sete, precisou de uma empregada que cuidasse da casa e
olhasse as crianças depois que chegassem da pré escola.
Instituto Maria Amália.
Como eu adorava aquela escola! Ia pra lá desde o maternal, com um ano de idade,
lá aprendi a ler bem novinho, a fazer fila pra ir pra sala ao som de uma canção
que sei cantar até hoje, lá aprendi que o cheiro de álcool na folha do dever de
casa, fresquinha do mimeógrafo, deixava a gente “alegrão”. A escola ficava a
poucos quarteirões da minha casa, e naquela Belo Horizonte dos anos 1970 eu já
não precisava que me buscassem depois da aula, embora minha mãe sempre me
deixasse lá bem cedo, indo pro trabalho em uma Variant que tinha a cor
igualzinha ao patê de fígado de pato que serviam junto com os pães no antipasto
do restaurante italiano que meu pai mais amava, o Dona Derna.
Algumas vezes eu chegava
da escola e esperava a minha mãe voltar do trabalho, almoçar conosco e sair de
novo. Outras eu recebia o aviso de que ela não viria, que nós iríamos almoçar
assentados na sala de tv, não “carecia” arrumar a mesa.
Todas as vezes, depois do almoço e da partida
da minha mãe, a ordem era a de ficar bem quietinho, ver televisão baixinho, ler
um livro infantil ou brincar no quarto com as portas fechadas. Quebrar as
regras significava apanhar ou então, a temida Ave Maria. Eu detestava o Dirceu
Pereira. Detestava aquele programa brega que interrompia a sua programação
ridícula todos os dias às seis da tarde só pra me penitenciar na frente de uma
televisão preto e branco de tubo, muitas vezes ajoelhado no milho ou no feijão,
um minuto interminável.
- Você tem que rezar
alto, pra eu escutar. E se não fizer o que eu mandar vai apanhar e depois vai
apanhar da sua mãe, pois é em mim que ela vai acreditar. Se você contar pra sua
mãe ela vai te bater também, porque você foi desobediente.
Eu acreditava. E rezava
fervorosamente praquela imagem na televisão, pedia pra crescer rápido e deixar
de ser magrelo, e um dia poder socar o meu carrasco. Mas o que acontecia de
verdade era eu ter muito medo. Medo de entrar sozinho na cozinha e encontra-la
lá, medo daquele quarto de empregada pequeno e escuro, sempre fechado e
enfumaçado, na minha imaginação infantil era como a cova de um dragão terrível.
Eu não entendi porque a
Zezé muitas vezes andava nua pela casa. Era um apartamento cheio de janelas e
com vizinhos próximos, eu tinha vergonha de ficar de cuecas, quanto mais pelado
como ela. Ela tinha seios enormes e pesados com veias muito azuis, pernas
cabeludas e quase nenhum cabelo lá embaixo. Não sei o quanto dessa estória toda
eu bloqueio e sabe-se lá do que lembraria se me esforçasse. Prefiro não pensar
nisso.
Houve um dia, não sei por
qual motivo, em que a Zezé me levou à casa dela, e para isso precisamos pegar
dois ônibus, descer em um ponto de ônibus perto da Hípica na cidade vizinha de Contagem
e praticamente atravessar o bairro Riacho das Pedras até o que parecia ser um
aglomerado de barracos. Lá conheci sua mãe e seu filho, tomei banho de bacia
com água esquentada na fogueira e brinquei descalço em um descampado cheio de
lixo ao lado de um riacho que nunca vou saber se é o que emprestava o nome ao
bairro. Também descobri que o meu Batmóvel de brinquedo que tinha sumido – e me
legado uma surra por parte da minha mãe - tinha sido “incorporado” aos
brinquedos do filho da Zézé, Vi e fiquei calado.
Nesse dia ela não me
bateu. Nem levantou a voz.
Dias e meses se passaram
e aquele inferno parecia que não ia terminar. Tímido e medroso, eu tinha receio
de contar pro meu pai e ele brigar com a minha mãe. Tinha medo de contar pra
minha mãe e ela agir exatamente como a Zezé ameaçava. Um dilema insolúvel aos
seis anos de idade...
Até que me lembrei do Batmóvel.
Ora, se ela pegou um brinquedo meu, também poderia ter pego outras coisas.
Minha mãe sempre teve uma
multitude de anéis, bijuterias imensas e coloridas, em voga tanto nos anos 70
quanto hoje. Havia um anel em especial, vermelho ou alaranjado, que chamava
muita atenção. Numa sexta feira aproveitei que a Zezé estava no banho, e como
que em uma operação de guerrilha peguei aquele anel, entrei em seu quarto e
coloquei em sua bolsa. E ela foi embora levando o meu “presente”. Poucas vezes
na minha vida senti tanto medo e tanta vergonha.
Não demorou muito tempo pra
ela não mais aparecer lá em casa.
Minha mãe – que nunca foi
a mais contida das pessoas – conta que descobriu que ela estava roubando e a
mandou embora. A história como ela conta é bem menos civilizada e mais raivosa
que esse resumo, acreditem.
Meu irmão tinha apenas 3
anos e eu fico feliz que ele não se lembre dessa época. Na maior parte do tempo
ele ficava brincando, dormindo ou vendo desenhos animados, nunca apanhou da
Zezé porque demorou pra entrar ou sair do banho, por ter deixado sobrar comida
no prato ou porque riu alto de alguma coisa. Eu nunca contei essa história pra
ele, pra minha mãe ou pro meu pai. Na
verdade, até agora, só a minha esposa sabia. A mim sempre soou uma história
sofrida e exagerada, um conto melodramático de Dickens às avessas,
abrasileirado e mal adaptado ao século 20.
Bem mais tarde, um grande
amigo alguns anos mais velho, começou a trabalhar como radialista em Betim.
Rádio Liberdade FM. Aos 16 anos, aquilo me parecia o máximo. Trabalhar como
radialista numa rádio alternativa (que terminou os dias como emissora sertaneja).
O horário, como todo iniciante, não era dos melhores: meia noite às 4 da manhã,
sem direito a locução. Entre muitas idas acompanhando, acabei fazendo amigos e até
arrumei um “affair” por lá, que um dia me convidou pra um churrasco no fim de
semana. Fui de ônibus, que calhou de ter uma parada naquele mesmo fatídico
ponto do Riacho das Pedras em Contagem. Olhei pra fora e congelei.
Bem ali, debaixo da minha
janela, estava a Zezé. Em pé próximo ao ponto, comprando laranjas de um
vendedor num carrinho daqueles que tinha uma geringonça pra descascar a fruta e
tirar a casca em uma aspiral perfeita. Da janela do ônibus olhei pra ela. Ela olhou
de volta, com aqueles olhos muito azuis.
E sorriu.