quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

SEU DOTÔ.

"Seu dotô, só me parece 

Que o sinhô não me conhece 

Nunca sôbe quem sou eu"...


(Patativa do Assaré)
                       


Os versos ali em cima, do grande poeta Cearense, na verdade eram destinados aos políticos. Mas bem que se encaixam como uma luva na descrição de uma banda podre que, a exemplo dos maus políticos, vem denegrindo a imagem de uma classe tão bonita e importante de profissionais: os médicos.

Esse texto é mais do que uma reclamação. É um alerta.  E é também mais um daqueles temas quase impossíveis de se tratar com graça e leveza. Se der pra rir, vai ser de nervoso.

Felizmente  eu vou escrever pouco aqui. Só o que aconteceu comigo. E nada é invenção. Se fizesse um apanhado das conversas e reclamações dos meus "irmãos" doentes crônicos, encheria umas 100 páginas. E acreditem, esses testemunhos têm peso. 

Porque ninguém vai mais ao médico do que a gente. Talvez - e só talvez - os hipocondríacos. E as duas categorias se confundem: como existem hipocondríacos entre nós, meu Deus! Afinal de contas, não somos desprovidos de defeitos. Mas essa "mea culpa " eu faço depois. Em um outro texto. Sou pedra, mas também sou vidraça, nada mais justo.

Nas outras postagens vocês já se depararam com alguns deles: o ortopedista chinês "sádico", o osteopata doidão, o gastroenterologista "brincalhão".  Todos bons no que fazem, não duvido. 

Mas que cometeram o mais grave dos pecados: não entenderam que, logo ali na sua frente, estava outro ser humano. Em sérios problemas. Fragilizado.

É como se, nos anos após formados, fossem abstraindo a realidade e transformando em uma espécie de ficção tudo aquilo com que eles se deparam. Eu brinco que, de uns anos pra cá, parece que quase todo policial se acha um Capitão Nascimento e quase todo médico se acha um Dr.Gregory House.

E dá-lhe desumanidade e prepotência, dá-lhe certeza de sua infalibilidade, dá-lhe mímica comportamental hollywoodiana. Infelizmente as qualidades daqueles "heróis quase mitológicos" eles não possuem. Por mais que pensem que sim. Talvez por isso exagerem tanto nos defeitos.

Quando eu fiquei temporariamente (47 dias) tetraplégico no meio do ano passado, devido a uma crise neurológica autoimune que nenhum exame conseguiu determinar, observei, paralisado, uma procissão de médicos - especialistas - que não eram aqueles que oficialmente cuidavam de mim - me "visitando", fazendo perguntas do tipo: Você já comeu hoje?  ou Como você tá se sentindo, amigão? 

Um deles, médico neurologista de renome, chegou a insinuar que eu não estava andando porque estava "gordo demais"! Solicitou uma dieta no prontuário! Usou como "prova do crime" um biscoito que a Fabi - não eu! - estava comendo! Em seguida, como seus "colegas", assinou meu prontuário médico e provavelmente ganhou mais um extra, como "consulta". Me dá calafrios imaginar o que seria de mim sem o plano de saúde.

A Nutricionista do Hospital ficou abismada com o fato na manhã seguinte e corrigiu aquilo tudo, antes que me fizesse mais mal. 17 dias mais tarde, mesmo seguindo a dieta sem restrições prescrita pela Nutricionista, saí do hospital 20 kg mais magro. 

Em 2005 eu acordei com uma dor tremenda em um dos olhos. Fotofobia, vermelhidão, uma série de sintomas até então novos - naquela intensidade - para mim. Meu olho esquerdo parecia o do Exterminador do Futuro, aquela luz forte e piscando, saca? Ao menos era assim que eu sentia. 

Era agosto, semana final das nossas férias, tradicional época de check up total. Mais que depressa agendei um oftalmologista, reconhecido e indicado por muitos.

A consulta transcorreu normalmente. Era uma quinta feira. Já havia voltado ao trabalho e estava quase morrendo de dor no olho há uns 3 dias. Ia trabalhar de óculos escuros, tamanha a sensibilidade à luz. Aliás, assistia tv à noite de óculos escuros. Entenderam o drama? 

- Pode ficar tranquilo, Sr. Alexandre, o que você tem é uma irritação comum nessa época de inverno, um ressecamento. Vou te indicar um colírio simples e logo vai estar bom.

Na manhã seguinte parecia que eu tinha lâminas de gillete dentro do olho. A parte branca não existia. Era vermelha. Quase um demônio de filme B. Liguei novamente pro médico, explicando a situação:

- Fica tranquilo, continua com o colírio. Se não melhorar, me liga na segunda feira e a gente resolve. Só faltou o " la garantia soy Yo".

A providência divina quis que a Fabi tivesse consulta com o seu Neurologista naquela mesma tarde. Eu, como sempre, a acompanhei. Já entrei pedindo desculpas, afinal, ninguém merece um acompanhante com óculos a la "Roy Orbinson". O Médico se interessou:

- Tira os óculos... errrr... olha, não é a minha especialidade, mas todo mundo que estuda medicina sabe que esse seu quadro, esse tipo de vermelhidão em um único olho e essas dores, isso é um alerta de coisa séria.

Ligou dali mesmo pra um amigo Oftalmologista e explicou a coisa. O cara estava indo almoçar. Cancelou o almoço. Me mandou ir para o consultório dele IMEDIATAMENTE. A consulta da Fabi ficou pra outro dia.

- Olha, o que você tem é muito sério. Você está com uma uveíte em grau avançado, seu olho está cheio de pus, nós vamos entrar com muitos medicamentos, colírios e comprimidos. Você vai sair daqui, comprar tudo e aplicar AGORA. Não é daqui a meia hora. Não é daqui a cinco minutos. E nem assim posso garantir que você não vai perder a visão nesse olho. Só não consigo entender como você pegou essa infecção séria...

- Doutor, eu sou espondilítico e...

- Tá explicado. Isso significa que provavelmente é uma infecção sem agente patológico, autoimune. Mas nem por isso vamos diminuir os medicamentos. Não podemos correr o risco.

Enfim, fiz tudo direitinho e fui curado. Sem sequelas. Porque o primeiro Médico se interessou e o segundo entendeu que teria que atrasar o seu almoço naquele dia e fez uma consulta longa e um exame completo. 

Imaginem se eu espero até a segunda feira pra ir ao "açougue" daquele outro "doutor".  Eu ia ficar uma lindeza de tapa-olho.

Nem preciso dizer que esse Médico virou o meu Oftalmologista de confiança, que consulto até hoje, e com quem já enfrentei uma segunda crise de uveíte em AMBOS os olhos ao mesmo tempo. Que, sabe-se lá como, de tão forte, mudou a curvatura das minhas córneas e curou a minha miopia! Que sorte a minha!

Alguns anos depois, troquei de reumatologista porque ele insistia em utilizar um medicamento que não mais fazia efeito. 

Eu ali, péssimo; o medicamento faltando há meses; uma luta tremenda, acionando advogado pra tentar conseguir  as ampolas; o laboratório do tal medicamento me ligando direto apenas pra saber se eu continuava as aplicações mensais e pra confirmar se era o Dr. Fulano quem receitava... eu já sem andar, na maior crise e o cara viajando pra Boston às expensas do tal laboratório, onde "iria consultar os maiores especialistas no assunto, sobre o meu caso". Que honra!

Na ausência dele, fiz exames e descobri que, como já suspeitava, havia desenvolvido anticorpos contra o tal medicamento. Exatamente como ele mesmo havia me prevenido alguns anos atrás:

- Olha, você tem que aplicar certinho, na data certinha, senão corre o risco de desenvolver anticorpos... como assim?! Aquele mesmo médico agora insistia no uso, mesmo após 8 meses de falta do medicamento? Por quê?

"Money talks", meus amigos. 

Ou vocês não se irritam quando determinados representantes de venda de certos laboratórios tenham prioridade no atendimento e na atenção do "dotô", em detrimento da sua consulta com hora marcada? E como se divertem, riem e fazem piadas, vendedor e médico! Amicíssimos.

Vocês não estranham a insistência na indicação DAQUELE remédio, às vezes de geração inferior a algumas outras opções, mas, coincidentemente, do mesmo laboratório que paga o "simpósio internacional all you can eat"?

Não é parecido com o caso daquele balconista de farmácia que INSISTE em te empurrar o genérico, dizendo que é idêntico ao de "marca" mas OMITINDO que a lei de medicamentos genéricos brasileira autoriza um fator de semelhança de 80% a 125% em relação ao medicamento referência?

Enquanto isso o balconista destaca uma bordinha ou selo adesivo das caixas que vende, pra ganhar o seu bônus na próxima visita do vendedor. E você sai feliz, porque pagou baratinho. Uma munição calibre .38 também custa baratinho. Achei a R$ 1,40 numa loja de Curitiba. De marca!

Já imaginaram o que esses 20% a menos ou 25% a mais de composto podem fazer em se tratando de ansiolíticos, anticoagulantes, remédios pra pressão, antidepressivos, analgésicos e antinflamatórios? "Burra" lex sed lex. Vai reclamar pra quem?

E ADIVINHA se a maior parte dos medicamentos distribuídos gratuitamente nos postos de saúde não são genéricos... todo médico sabe disso? Não sei. Mas deveriam saber. Deveriam nos alertar. Os Médicos alertam.  

(Atenção pra maiúsculas e minúsculas. Nesse texto fazem toda a diferença).

Já encontrei médicos em minha vivência que se recusaram a me atender emergencialmente em seu "horário de folga". Se recusaram a sair de casa e "perder" 15 minutos pra receitar um medicamento que amenizasse uma dor excruciante. Desligaram os celulares e orientaram os parentes a dizer que "não sabiam como encontrá-los". Provavelmente se faziam indisponíveis para que pudessem ser mais valorizados.

Eu entendo que muitos desses profissionais tiram leite de pedra. Trabalham em turnos desumanos, com menos do que o mínimo de estrutura, alguns recebendo salários aviltantes. Assumindo responsabilidades enormes, às vezes até a culpa por acontecimentos muito além do seu alcance e previsão.

Reconheço e sou simpático à causa. Mas acho também que o pobre paciente não é culpado por essa situação. 

Fato é que eu poderia escrever um livro só com esses casos "estranhos". Meus e dos meus conhecidos. Ou seus. Mas não é isso que é importante.

O importante é que ainda existem Médicos como antigamente. Como nos livros e nos filmes. E não nas minisséries. Atenciosos, humanos, cuidadosos, generosos com seu tempo e talento. Tenho a honra de ser amigo de muitos deles. De ser paciente de outros mais.

Eles não são infalíveis. Eles não sabem tudo, porque é humanamente impossível. Mas eles reconhecem seus defeitos, e por isso, estudam mais, examinam com mais cuidado, consultam com mais tempo. Escutam.

Cada vez mais vejo amigos e conhecidos meus embarcando nessa brilhante carreira, gente como o Luciano Sabino que resolveu ser fisioterapeuta porque entende melhor que ninguém o sofrimento das pessoas, pois já sentiu o descaso na pele.

Gente como o garoto Thiago Oliveira, lá do Grupo EA no Facebook, que agora está em dúvida se estuda Direito ou Medicina, só pra poder se especializar em reumatologia e poder ajudar outros espondilíticos como ele.

Deveriam criar às cátedras de EMPATIA e HUMANIDADE nas Faculdades de Medicina, de Enfermagem, de Odontologia, de Fisioterapia. 

E eu tenho certeza que os Lucianos, os Thiagos, as Iaras, as Letícias, os Josés, as Maria Lúcias, as Alines, os Adrianos, os Karls, as Priscilas os Marcelos, os Carlos... todos eles - e todos aqueles que não lembrei, que não conheço, mas que são como eles - estariam mais do que preparados pra serem professores. 

Porque pessoas assim são Mestres na rara arte de se doar.


10 comentários:

  1. Adorei seu texto, está maravilhoso, sem palavras....a empatia e humanidade deveria tambem ser ensinada nas faculdades de direito..
    Mil beijos

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  2. Sensacional! Parabéns pelo tema de hoje... tenho certeza de que, como eu, muitas outras pessoas irão se identificar. Bj.

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  3. Putz, Xandão. Hoje seu texto me fez chorar (na parte da uveíte). Compartilho do desabafo, na verdade "quase" tudo não passa de interesse financeiro mesmo. Abraço.

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  4. Oi, Heloise.
    Devia mesmo!
    Em todas as profissões, mas especialmente nessas duas: Direito e Medicina.
    A questão do "poder" sempre me incomodou muito.

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  5. Ei, Fabi.

    Obrigado, lindona.
    Você mais que se identifica. Se reconhece nessas estórias, pois é quase impossível dissociar minha vida e você.
    Continua sendo minha leitora - revisora aí. Preciso disso.

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  6. Paulo, a gente se emociona porque se lembra que vivenciou muita coisa parecida.

    Como toda profissão, os Médicos realmente precisam ser valorizados e muito bem remunerados. O problema acontece quando ganância substitui vocação. Aí dá no que dá, e viramos "cifrões humanos".

    Abração procê!

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  7. Xandão, amei, chorei. Você é muito bom, escreve muito! Parabéns! Falta sensibilidade, olhos nos olhos, perceber o outro, o momento... Mônica

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  8. É verdade... tudo está ficando cada vez mais impessoal.
    Obrigado, Mônica.

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  9. É a mais pura realidade.
    "sem palavras"

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  10. Um relato muito ponderado. Uma denúncia que me parece muito bem embasada.

    Atento,

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